A partir de terça-feira, 21 de outubro, a Sala P. F. Gastal da Usina do Gasômetro (3º andar) exibe a mostra A
China de Wang Bing, com quatro obras de um dos mais importantes documentaristas contemporâneos. Com apoio do Instituto Moreira Salles e da Tokyo
Filmes, a mostra traz os dois primeiros e os dois últimos filmes do realizador, apresentando um
recorte amplo de sua aclamada filmografia para os cinéfilos
porto-alegrenses. Os ingressos para a mostra custam R$ 6,00, com meia
entrada para
estudantes e pessoas acima de 60 anos.
Buscando
entender as transformações do país a partir da derrocada de uma grande
indústria de metais pesados do distrito de Tie Xi Qu, Wang Bing surgiu
para o mundo com seu filme de estréia, o monumental A
Oeste dos Trilhos (2003), com mais de 9 horas de
duração, divididas em três partes e captadas em uma pequena câmera
digital mini-dv ao longo de dez anos. Na recente enquete promovida pela
revista inglesa Sight
& Sound, com a participação de 340 críticos, curadores e cineastas
do mundo inteiro, o filme é lembrado entre os vinte grandes
documentários da história do cinema. A revista francesa Cahiers du
Cinéma também destacou sua importância e o colocou entre os dez
melhores filmes da primeira década dos anos 2000.
A obra de Wang Bing segue em 2007, com o filme Fengming: Memórias de uma Chinesa, um mergulho no período das punições arbitrárias da Revolução Cultural
Chinesa, registrando as histórias através de longos depoimentos da jornalista He Fengming, presa e torturada durante anos.
No início dos
anos 2010, após uma experiência no campo da ficção sem abandonar o olhar
documental, Wang Bing realiza dois novos documentários: Três Irmãs (2012),
premiado no Festival de Veneza, sobre três crianças camponesas abandonadas pela mãe, e Até que a Loucura nos Separe (2013), que acompanha o cotidiano de um hospital
psiquiátrico isolado no sudoeste da China.
GRADE DE PROGRAMAÇÃO
21 a 26 de outubro de 2014
A Oeste dos Trilhos (Tie Xi Qu. Parte 1: Ferrugem) Direção, produção, fotografia e montagem Wang Bing (China, Holanda,
2003. 244’)
Entre 1999 e
2001, para seu filme de estreia, o diretor seguiu a antiga linha de
trens que cortava a área industrial de Tiexi, no Nordeste da China, para
documentar a situação precária de trabalhadores
do que foi um dia o grande centro da indústria metalúrgica chinesa. Em
Ferrugem, ele mostra a desintegração da cidade. Expõe as precárias
condições de trabalho numa fundição, numa fábrica de cabos elétricos e
numa outra de chapas metálicas – máquinas desgastadas,
ausência de medidas de segurança e de equipamentos para proteger os
trabalhadores de substâncias tóxicas. Com um sistema de produção
obsoleto, as fábricas enfrentam a falta constante de matérias primas, e
os trabalhadores vão pouco a pouco perdendo o emprego.
Exibição em DVD.
A Oeste dos Trilhos (Tie Xi Qu. Parte 2: Vestígios) Direção, produção, fotografia e montagem Wang Bing (China,
Holanda, 2003. 178’)
Vestígios
segue as famílias de trabalhadores de um antigo conjunto residencial
operário com a atenção voltada para as crianças e os adolescentes
obrigados a lidar com um inevitável deslocamento, expulsas
da cidade pelo fechamento das fábricas de Tiexi. Outrora o grande
centro da indústria pesada, Tiexi, no nordeste da China, é agora um
cenário de decadência. Com as reformas econômicas, as falências,
demolições e transferências de fábricas para outras regiões
deixaram comunidades inteiras sem emprego. Exibição em DVD.
A Oeste dos Trilhos (Tie Xi Qu. Parte 3: Trilhos) Direção, produção, fotografia e montagem Wang Bing (China, Holanda,
2003. 132’)
O cotidiano de
pai e filho que limpam os pátios ferroviários das fábricas mortas em
Tiexi, no nordeste da China, outrora um grande centro industrial, agora
um cenário de decadência. Buscam peças para
tentar vender como matéria bruta para as fábricas que ainda funcionam.
Com as reformas econômicas, as falências, demolições e transferências de
fábricas deixaram comunidades inteiras sem emprego. Trabalhadores
deixados para trás, sobrevivem da venda de ferro-velho
das fábricas demolidas. Exibição em DVD.
Fengming: Memórias de uma Chinesa (He Fengming) Direção,
fotografia e montagem de Wang Bing (China, França, 2007. 186’)
Uma longa
entrevista em que He Fengming relata sua participação e punição na
Revolução Cultural Chinesa. Ela e o marido, jovens jornalistas, foram
presos como inimigos do Estado, depois da publicação
de críticas contrárias à campanha “Que se abram mil flores”. Presos,
foram enviados a diferentes em campos de trabalhos forçados, lugares de
humilhação, castigos físicos e morte. Embora tenha filmado todo o tempo
com uma única câmera e um mesmo ponto de vista,
o depoimento foi filmado em diferentes ocasiões: depois de uma versão
de cerca de uma hora e outra de pouco mais de duas horas, Wang Bing
voltou a entrevistar sua personagem para compor, finalmente, a versão
definitiva, com pouco mais de três horas de duração.
Exibição em DVD.
Três irmãs (San Zimei) de Wang Bing (China, França, 2012. 153’)
Três crianças
pobres de uma família de camponeses. Apesar de estarem próximas dos avós
e tios, vivem sozinhas por abandono da mãe. A mais velha, Yingying, é
deixada ainda mais sozinha quando o pai resolve
levar as duas menores para a cidade. Exibição em blu-ray.
Até que a loucura nos separe (Feng ai) Direção, fotografia e montagem de Wang Bing (Hong Kong, Japão, França, 2013.
227’)
O cotidiano de
um hospital psiquiátrico isolado no sudoeste da China com cerca de 100
pacientes, homens detidos por várias razões e distúrbios. Solitários,
abandonados por parentes que raramente visitam,
alguns foram simplesmente abandonadas ali pelo governo local por terem
quebrado regras. Exibição em blu-ray.
GRADE DE HORÁRIOS
21 a 26 de outubro de 2014
21 de outubro (terça)
19:30 – Até que a Loucura nos Separe
22 de outubro (quarta)
20:00 – Fengming: Memórias de uma Chinesa
23 de outubro (quinta)
20:00 – Três Irmãs
24 de outubro (sexta)
19:30 – Até que a Loucura nos Separe
25 de outubro (sábado)
17:00 – A Oeste dos Trilhos Parte 1: Ferrugem
26 de outubro (domingo)
15:00 – A Oeste dos Trilhos Parte 2: Vestígios
18:00 – A Oeste dos Trilhos Parte 3: Trilhos
Wang Bing: a história pequena
Por José Carlos Avellar
Desde as
primeiras projeções, em janeiro de 2003, no Festival de Rotterdam, A
oeste dos trilhos despertou uma surpresa duplamente agradável. Essa
extensa análise das transformações sociais e econômicas
da China contemporânea é feita a partir do registro da decadência da
grande indústria de metais pesados de Tie Xi Qu, distrito vizinho à
cidade de Shenyang, no nordeste da China. Através da pequena história
dos trabalhadores gradativamente marginalizados com
o desaparecimento ou a transferência das fábricas, o filme nos leva a
refletir sobre a grande história que se desenrola por trás dessas
trajetórias individuais.
São nove horas
divididas em três partes: Ferrugem, Vestígios e Trilhos. O filme
percorre os espaços vazios das fábricas, acompanha o tempo de espera dos
mais jovens e dos mais idosos em torno da fábrica
e, ao fim, a demolição, quando os operários se aglutinam entre os
escombros em busca de peças para vender como ferro-velho para fábricas
ainda em funcionamento. E bem aí, dentro dessa surpresa inicial pela
extensão do documento, uma outra, e inseparável da
primeira, a descoberta de um modo de filmar que propõe um outro
realismo cinematográfico. Um modo de filmar que, ao mesmo tempo, se
serve dos novos meios técnicos, a exemplo da câmera digital, mas que não
repete os habituais efeitos de saturação de luz e cor,
a agilidade e o hiper-realismo da imagem em alta definição. A oeste dos
trilhos olha sem pressa.
Nenhuma
narração, nenhum comentário musical, nenhuma fonte de luz além da
existente no interior das fábricas. Imensos galpões quase vazios
funcionam ainda que precariamente. Quartos e cozinhas das casas
sem aquecimento onde trabalhadores, em meio a um inverno rigoroso,
esperam o governo decidir seus destinos. As conversas são filmadas com a
câmera em ângulo baixo. Muitas vezes, a câmera pequena é colocada sobre
a mesa, ao lado de uma garrafa térmica, entre
alguns trapos, como um objeto qualquer da casa. Esses gestos simples da
imagem reafirmam a vontade que impulsiona o filme: colocar-se entre os
trabalhadores do outrora grande centro de indústrias de metais pesados
de Tie Xi Qu, acompanhar suas falas e seus
silêncios, suas idas e vindas em busca de trabalho; servir-se da câmera
como uma ferramenta idêntica a qualquer outra usada pelos operários
antes de serem empurrados para a margem com o fechamento das fábricas.
"A fábrica é a
protagonista de meu filme", diz o diretor. Mais precisamente, a fábrica
transformada em uma imensa ruína em consequência das transformações
econômicas da China, o desaparecimento da fábrica
como ferrugem, vestígio, trilho para o estudo do passado recente.
"Pertenço a uma geração mais jovem, não conheço as razões e os
sentimentos das pessoas mais velhas. Com A oeste dos trilhos queria, ao
mesmo tempo, discutir algumas questões de nossa história
e outras de meu processo criativo. Basicamente, segui meus instintos,
não estabeleci previamente uma linha de abordagem, não organizei
racionalmente uma estratégia cinematográfica. Quando terminei o filme,
senti que um período da minha vida tinha acabado.
Um novo período se inaugurava. Comecei a pensar como poderia
desenvolver uma abordagem mais estruturada para o que eu queria fazer no
cinema: discutir a experiência da geração anterior. De repente, nos
descobrimos com 30 anos de vida - entre os 30 e os 40
- e começamos a perceber a discrepância entre o que nos foi ensinado e a
realidade. Nos ensinaram a viver uma irrealidade. Essa foi uma
motivação. Uma outra: hoje, na China, as pessoas não querem olhar para o
passado. Só pensam no futuro. Só pensam no que
querem ser amanhã. O ontem é irrelevante. O hoje, daqui a pouco, também
vai-se tornar irrelevante. Se esse pensamento persistir, será muito
problemático. Esse tipo de vida no vazio, uma ilusão suspensa no espaço,
sem qualquer ligação com a terra, cria em mim
uma sensação desagradável, um desconforto psicológico difícil de
descrever", explica o diretor.
Um filme é um
processo difícil e doloroso, muito cansativo e difícil - prossegue Bing.
"Quando A oeste dos trilhos terminou, não senti algo como: 'Ótimo,
estou feliz e satisfeito'. Fiz o filme para
contar uma história. E ao contar essa história, eu me torno parte dela.
Contadores de histórias, os artistas habitualmente imaginam ter uma
certa influência sobre o público. Pessoalmente, não quero exercer essa
influência - isso implicaria em adotar uma determinada
noção de imparcialidade e de verdade. Eu tenho dificuldade de situar o
meu trabalho. Não importa como um filme conta uma história, é muito
difícil dizer que num filme apresentamos a verdade. Na vida, há momentos
em que as coisas são difíceis de entender. Não
sabemos lidar com elas. Todo cineasta enfrenta a dificuldade de ser
imparcial durante o processo criativo - enfrenta até mesmo a dificuldade
de ser fiel a si mesmo. O que é muito difícil. É algo difícil de
alcançar em sua vida. Eu também enfrento essa dificuldade.
Afinal, qual o meu papel quando filmo um documentário? Às vezes você
pode confiar em sua capacidade de compreender a verdade, mas às vezes
você se sente perdido e acha que jamais vai alcançá-la. Com relação a
isso, estou plenamente consciente de que o meu
filme é um intermediário entre a minha vida e a vida do meu
interlocutor. O resultado dessa interação é que pode ser considerada a
verdade de um documentário".
Qual seria a
parte de verdade na feitura de um filme? Para Wang Bing, "o
empreendimento é por vezes duvidoso, noutras ele faz sentido. Um filme
traz mesmo uma certa porção de verdade. Se podemos dizer
que existe um significado num documentário, acho que ele não está na
história contada, mas num certo momento do documentário, num instante
preciso em que se transmite algo. Um lugar, um instante na vida de
alguém. São, digamos, dez, cinco minutos, não importa.
Esse momento, quando ele se apresenta e tomamos consciência dele, é
determinante. Esse momento não é a história, mas a história pequena. A
história pequena é o que existe de mais bonito em um documentário."
Seu segundo
filme também prossegue discutindo questões mais gerais da China e outras
do processo criativo do diretor. Fengming: memórias de uma chinesa é
uma longa conversa filmada também por uma câmera
que olha de baixo para cima e não recorre a qualquer fonte de luz além
da existente no local. Daí em diante, Bing produziu uma obra de ficção e
dez documentários de curta e de longa-metragem empenhados em discutir a
experiência da geração anterior e em perguntar
por que pessoas de hoje não querem olhar para o passado. São filmes
empenhados em buscar na história pequena o momento determinante em que
um documentário transmite algo.
Wang Bing
pertence à chamada Sexta Geração de diretores chineses (a sexta geração
de diretores formados pela Academia de Cinema de Pequim). A oeste dos
trilhos (Tie Xi Qu, 2003, 551'), filmado entre
1991 e 2001, foi seu primeiro filme. Em seguida vieram Fengming:
memórias de uma chinesa (He Fengming, 2007, 186'); Fábrica de
brutalidade, um dos seis episódios de O estado do mundo (2007, 105'. Os
outros cinco episódios foram dirigidos por Aiysha Abraham,
Chantal Akerman, Pedro Costa, Vicente Ferraz e Apichatpong
Weerasethakul); Petróleo (Caiyou Riji, 2008, 840'); Xi Yanh Tang (2009,
18'); Dinheiro de carvão (Tong Dao, 2009, 53'); O homem sem nome (Wu
ming zhe, 2010, 92'); A vala (Jiabiangou, 2010, 112'); Três
irmãs (San Zimei, 2012, 153'); Sozinho (Gudu, 2013, 89'); Venice 70:
Future Reloaded (filme em 70 episódios com a participação, entre outros,
de Júlio Bressane, Karim Ainouz, Isabel Coixet, Jean-Marie Straub,
Walter Salles, Jia Zhangke e Edgar Reitz; 2013,
120'). Seu mais recente documentário é Até que a loucura nos separe
(Feng ai, 2013. 227').
José Carlos Avellar é coordenador de cinema do Instituto Moreira Salles.
Sala P. F. Gastal
Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia
Av. Pres. João Goulart, 551 - 3º andar - Usina do Gasômetro
Fone 3289 8133 / 8135 / 8137
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