Pedro Almodóvar é um diretor autoral procurando inserir em sua filmografia a sua essência, ou mais especificamente a sua própria vida. O grande talento cresceu em meio ao universo das mulheres, travestis, trans, música, teatro, drogas e o universo cultural que é apresentado em Madrid e que fez da cidade o principal cenário dos seus filmes. No final dos anos oitenta para os noventa o realizador já havia chamado atenção com títulos como "Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos" (1988), "Ata-me!" (1989), "Kika" (1994) e tantos outros.
Porém, se olharmos para trás, revisto hoje esses filmes parecem que todos serviram como uma espécie de laboratório para que o realizador criasse suas melhores obras primas. Isso ocorreu em "Carne Tremula" (1997), onde Madrid se torna uma espécie de personagem e da qual faz com que os personagens se veem envolvidos em jogo que culmina na mudança dos seus próprios destinos. Mas é em "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999) que o realizador encontra o seu equilíbrio perfeito e ao mesmo tempo prestando uma belíssima homenagem ao cinema como um todo.
A trama começa no dia do aniversário de Esteban (Eloy Azorín), do qual ganha de presente da sua mãe Manuela (Cecilia Roth), ingressos para a nova montagem da peça "Um bonde chamado desejo", estrelada por Huma Rojo (Marisa Paredes). Após o evento, ao tentar pegar um autógrafo de Huma, Esteban é atropelado no local e morre no hospital. Manuela resolve então ir até o pai do menino, que vive em Barcelona, para dar a notícia. No caminho, ela encontra o travesti Agrado (Antonia San Juan), a freira Rosa (Penélope Cruz) e a própria Huma Rojo.
É interessante observar que, por mais absurdo que seja a trama, ela é extremamente realista e humana, pois as situações que surgem ali nada mais é do que algo que pode acontecer no outro lado de nossa própria rua. Almodóvar retrata essas mulheres com total naturalismo, onde observamos elas transitarem entre a força e a fraqueza e fazendo das adversidades algo para que elas possam prevalecerem no seu devido tempo. Manuela, por exemplo, se vê envolvida em um espiral de eventos após a morte do seu filho, mas dos quais todos a levam ao ponto zero no final da trama, como se houvesse ali um plano realizado por uma força maior e para que ela então cumprisse uma determinada missão.
Vale destacar que o cineasta consegue prestar uma belíssima homenagem aos clássicos "A Malvada" (1950) e "Um Bonde Chamado Desejo" (1952), mas não se limitando em apenas homenagear, como também se tornarem peças centrais da trama. Se no primeiro clássico o tema era sobre o jogo de cena para se obter o sucesso nos palcos, o segundo é sobre degradação familiar, principalmente aquela imposta pelo machismo e fazendo das mulheres adentrarem em um caminho sem rumo. Unindo ambos os casos, além de alinhá-los com o universo do realizador, se têm um filme original e que acabou conquistando a crítica especializada no final do século vinte.
Curiosamente, se formos revê-lo hoje atualmente, se percebe que o longa é o começo do fim de tempos em que a AIDS ainda estava alarmando o mundo, onde os homoxessuais eram vistos com temor e cuja desinformação somente piorava tudo. Aqui, os personagens travestis são retratados como gente como a gente, mesmo com algumas figuras preconceituosas que se fazem presentes, mas prevalecendo as força de continuarem existindo mesmo quando o mundo diz ao contrário. Manuela, portanto, transita neste universo de forma natural, onde ser gay ou lésbica fica em segundo plano, mas cujo sentimentos, atos e consequências moldam o caminho desses personagens como um todo.
Vale destacar que esse é o segundo trabalho que o realizador faz ao lado de Penelope Cruz e da qual ela não demoraria muito para ingressar em Hollywood. Aqui, a sua personagem tem um papel primordial e da qual faz com que Manuela busque a sua redenção particular mesmo que de forma indireta, porém, mais do que merecida. Curiosamente, Cruz voltaria a interpretar a própria mãe do cineasta no filme "Dor e Glória" (2019) e da qual o cineasta descasca a sua real pessoa através da interpretação de Antônio Bandeiras.
"Tudo Sobre Minha Mãe" se tornou o 18º filme espanhol a concorrer ao Oscar internacional e ganhando de forma merecida. O sucesso fez com que o realizador embarcasse a seguir no que muitos consideram também a sua maior obra prima, "Fale Com Ela (2002), mas cuja trama deu maior espaço ao universo dos homens, porém, com total sensibilidade e puramente Almodóvar. Olhando para trás, se percebe que o realizador sempre se renovou em cada projeto, mas jamais deixando de ser como ele é como um todo.
"Tudo Sobre Minha Mãe" é o fim e começo de uma fase experimental de Pedro Almodóvar e fazendo com que ele pudesse liberar cada vez mais a sua real pessoa posteriormente em suas próximas obras.
Curiosidade: Exibido no último sábado (16/03/24) na Cinemateca Capitólio em comemoração aos vinte cinco anos do filme.
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