"Eu não sei de que tecido é feita
essa nossa vida, mas do outro lado de nossas dores mortais, há um lugar de
santuário".
-Katchoo.
ESTRANHOS NO PARAÍSO - SANTUÁRIO
Sinopse:Após
dez anos sem ver sua melhor amiga, Francine a encontra por acaso em um
restaurante de hotel, mas perde Katchoo de vista antes que possa falar com
ela.Deprimida, mergulhada em um casamento infeliz, Francine desmorona em
lembranças de Katchoo, David e de suas vidas juntos. Aos poucos são reveladas
as razões para as duas terem se separado por tanto tempo. Enquanto isso, a
senhora Peters, preocupada com a infelicidade crônica de sua filha, entra em
contato com Katina Choovanski e proporciona o reencontro das duas.
Às vezes, a gente se
pega recordando de um passado distante, de uma época que não volta mais e que
se da conta de que os pequenos momentos valeram por toda uma vida. Numa época
da escola em que eu era desprezado pelos outros alunos (por ser diferente), nunca
me esqueço de uma amiga que veio até mim para a gente se entreter no salão. Não
era nada demais, apenas ficávamos correndo um do outro, mas são pequenos
momentos como esse que sinto muita saudade. Mas então o que dizer de pessoas
que cruzam as nossas vidas, que nos completa, mas que por um motivo ou outro o
destino acaba nos separando?
Com esse pensamento,
não tinha como não me identificar com Francine, que ao rever de longe a sua
melhor amiga (e grande amor) Katchoo, imediatamente ela se lança em um mar de lembranças,
que na realidade correspondem aos arcos anteriores Love Me Tender, Inimigos
Mortais e Tempos de Colégio. Para os fãs brasileiros dessa HQ, não foi fácil descobrir
como seria esse reencontro, pois a primeira vez que vimos uma Francine mais
velha e observando Katchoo de longe, foram á exatos intermináveis dez anos e que o
ultimo volume Tempos de Colégio havia
sido lançado á seis longos anos. Não foi fácil, mas antes tarde do que nunca e editora HQM lança, não só o melhor arco da série
até aqui, como também a melhor leitura que eu tive nesse ano.
Retornando a trama,
Francine acaba por sem querer perdendo a chance de falar com Katchoo e
imediatamente sucumbe a depressão e bebida em um bar. No retorno para casa, ela
mergulha em boas lembranças em que vivia com Katchoo e David. São impressionantes
nesses momentos os desenhos que Terry Moore cria, pois na pagina 15 ele faz uma
transição entre o futuro e o presente de uma forma tão perfeita, que da a sensação
que estamos assistindo aqueles flashback que acontecem em determinados filmes. De
quebra, Moore cria uma bela homenagem há um dos quadros do pintor Potthast, em
que os protagonistas estão observando em um museu e é aonde acontece uma incrível
coincidência.
De volta ao futuro, Francine deseja loucamente voltar para
casa, mas não se refere ao seu antigo lar com a mãe, mas sim se referindo a
Katchoo. Para a surpresa do leitor, a mãe dela toma uma difícil decisão. Após isso,
somos levados a saber onde Katchoo está vivendo, para logo em seguida receber
uma importante ligação que mudaria os seus próximos dias. Até a pagina 42,
Terry Moore cria um cenário, onde a trama transita entre o humor pastelão e o
mais puro drama, sendo que esse ultimo é muito bem representado por uma Francine
em frangalhos, arrependida de ter tomado certas decisões na vida e de se dar
conta de que não tem como mudar isso.
Mas para a sua surpresa, Katchoo se encontra em sua cozinha,
ao lado de sua mãe e filha fazendo biscoitos. É ai leitor, que a personagem se
desmonta e é nas próximas paginas que
Terry Moore me pegou de jeito: duas paginas, onde o escritor soube transitar
tranquilamente entre a literatura e HQ, onde somos brindados com uma das leituras
mais emocionantes e tristes que eu li esse ano, pois eu me identifiquei tanto
com ela, que faço questão de escrevê-la aqui embaixo para sentir as palavras,
junto com as paginas originais publicadas nos EUA:
vi um colega da minha escola
lado de um ônibus escolar.
Na barulhenta brincadeira
na frente do ônibus que se
aproximava e acabou atropelado.
Esperando pela ambulância,
nós ficamos ao redor
dele,
e assistimos a sua morte.
olhos
fechados bem forte.
relembrava o terrível momento,
de
novo e de novo, de vários
pontos de vista, o garoto foi se calando.
Ele abriu
os olhos e olhou além de nossas
silhuetas para ver o sol, numa calmaria de paz.
Então percebi que ele não mais via o céu,
nem sentia a brisa
do outono,
nem sentia dor alguma ou ouvia o som,
dos professores chorando.
mas do outro lado de nossas
dores
mortais, há um lugar de santuário.
Eu sei por que uma vez estive ao lado
de um
garotinho e o vi encontrá-lo.
Anos depois, segurei a mão de Emma
até ela achar seu santuário
na neve
que caia do lado de fora de sua janela.
Então eu encontrei no banco de
traz
de uma viatura que corria, sob as lagrimas de Francine.
Acho que foi por isso que voltei.
Há algo mais importante
que os
os papeis que interpretamos.
e
da direção das nossas mudanças.
Tem a ver com quem tocamos e porque,
e isso importa
mais do que
podemos entender ou talvez lembrar.
Então, não importa o que aconteceu
ou que foi dito naquele
verão horrível
dez anos atrás, se Francine precisa de mim
eu vou estar aqui
para ela, para segurar
sua mão e fazê-la saber que não esta sozinha.
Eu devo
isso a ela, não da pra ver?
Nos olhos dela, encontrei o meu santuário.
E agora,
quando a vida é feita de sombras
bloqueando o sol, Francine também procura por
isso.
Mas não é irônico que ela procure em mim
por algo que vi nela todo esse tempo?
Não sei, talvez o santuário não seja
realmente encontrado no
sol, na neve ou
nas lagrimas da pessoa amada.
Talvez, quando é o momento certo,
essas coisas simplesmente captem o reflexo
de nossa própria alma e nos lembrem
de
quem realmente somos e de eu nosso lar
nunca esta tão longe assim – apenas além
das silhuetas que escurecem o sol.
Por
causa dessas duas paginas, é que o arco Santuário me
pegou de jeito e me fez querer escrever sobre o que já foi publicado de Estranhos no Paraíso até aqui no Brasil. Eu nunca vi texto
e imagem (um traço quase vivo) se casarem de uma forma tão perfeita, pois não
só nos emocionamos com os pensamentos de Katchoo, como também nas
imagens de uma Francine apertando
fortemente a mão em sua boca, pois da a entender que ela não está acreditando
no que está vendo, que o seu santuário de paz está a sua frente. Acima de tudo,
foi um texto que me identifiquei muito, que me fez mudar de opinião sobre
certos pensamentos pessoais que eu tinha ao longo desses anos e que me fez
revisitar o passado, mesmo ele não estando ao meu alcance.
Após essa explosão emocional de imagens e texto, Terry Moore
intensifica mais ainda o casório de HQ + literatura. Da pagina 55 á 62, existe
paginas somente com textos, onde descreve a conversa das duas protagonistas após
o encontro na cozinha, sendo que as paginas ao lado somente ilustram uma única imagem,
mostrando ambas sentadas nos fundos da casa. O dialogo explora ainda mais o que
havia acontecido com ambas durante os anos que ficaram separadas, mas deixa
certas questões no ar, como o fato do verdadeiro destino de David no futuro. O
restante do arco retorna ao presente, onde vemos o primeiro conflito das amigas.
Embora tenhamos ficado confortáveis sabendo que no futuro
elas se reencontrariam, não tem como não ficar tenso durante a primeira discussão
de ambas, que chega a um ponto de elas serem muito cruéis uma com a outra. O
caso que ambas estão certas, mas ao mesmo tempo ambas estão erradas em diversas
questões: Katchoo jamais foi muito sincera com a sua amiga com relação a certas
passagens do seu passado, e com o fato de esconder isso de Francine, acaba
colocando a amizade com a sua amiga em cheque. Já Francine, ao negar os verdadeiros
sentimentos que sente por Katchoo, sempre fez com que a relação entrasse numa
verdadeira montanha russa de idas e vindas e sem saber no que vai dar. Ambas se
amam, mas nunca souberam exatamente administrar esses sentimentos que tinham
uma pela outra.
O conflito chega ao ponto, que acreditamos que foi essa
passagem em suas vidas que as levou a não se verem mais, mas até termos certeza
disso, Terry Moore cria momentos de alivio cômico, como o fato da personagem
Casey, que é casada com o famigerado Fred Femurs, começar a dar em cima
de David, principalmente após o seu marido escancarar a sua obsessão que ainda
tem por Francine. Ao mesmo tempo, novamente o universo de Darcy Parker retorna
para bater a porta na vida dos protagonistas, mas dessa vez (aparentemente) os deixa
numa sensação de puro êxtase. Em meio a tudo a isso, Francine retorna para casa
e decidida a se entregar ao amor por Katchoo, mas como sempre, surge algo para
não acontecer exatamente isso.
O final do
arco termina com momentos muito engraçados, principalmente protagonizados por
Casey, que ao longo da série irá ter sua participação aumentada. Mas embora (aparentemente)
todos tenham terminado juntos novamente, os últimos quadrinhos deixam um
grande gancho para o próximo arco, onde o mundo de Darcy Parker irá retornar
para deixar a vida dos protagonistas do avesso. Mas embora eu considere que
esse final não tenha terminado de uma forma perfeita (que difere do seu inicio
arrebatador), Santuário é desde já a melhor HQ do ano, por fazer mexer com os
nossos sentimentos, e como eu disse acima, faz com que a gente repense sobre
certas questões da vida, como amor, amizade e escolhas que tomamos ao longo de nosso
percurso.
O mal disso
tudo, é temer a possibilidade de tão cedo a editora HQM
não publicar o próximo arco, sendo que tem ainda
mais dez volumes pela frente, para então
finalmente chegar ao seu final. Torcer para que essa demora de lançamento de
arco para outro não aconteça, pois Estranhos no Paraíso é leitura obrigatória,
não só para fãs que curtem HQ de qualidade, como também para aqueles que curtem
uma bela historia sobre seres humanos comuns, com os seus sentimentos conflitantes
e até aonde podem ser levados por eles.
Leia mais sobre
Estranhos no Paraíso: Parte 1, 2, 3, 4 e 5.