Histórias descontinuadas, brasilidade e cinema: próxima mostra da Sala Redenção reúne tudo isso em quatro filmes
Entre os anos 1960 e 1990, um diretor brasileiro buscou retratar a inacabada tentativa de outro diretor, norte-americano, em apresentar ao mundo a complexidade do que é Brasil e do seu povo. A mostra de agosto da Sala Redenção, Nem tudo é Orson Welles, reúne histórias dentro de histórias, que, nesse emaranhado, remonta fragmentos de quem foram Rogério Sganzerla, Orson Welles e Grande Otelo.
A partir do dia 7, estará disponível, no perfil do Facebook da Sala Redenção, os links para acessar a tetralogia de filmes dirigidos por Sganzerla, se estendendo até o dia 21 deste mês – confira clicando aqui. Ainda no dia 13 de agosto acontecerá uma conversa virtual sobre as exibições, no canal do Youtube do Departamento de Difusão Cultural com a equipe da Sala Redenção e um convidado especial.
O fio começa em 1942, quando o cineasta Orson Welles partiu para territórios tropicais com a missão de introduzir o país de dimensões continentais aos outros continentes. Para personificar com esmero a brasilidade (ainda que de forma minúscula se posta ao lado da imensa realidade), o ator Grande Otelo é convocado – para Welles, não haveria escolha melhor. Não contava o diretor de Cidadão Kane, no auge da sua carreira, que seria impossibilitado de cumprir a missão.
Fascinado por esse feito-não-feito, talvez por identificação pessoal, Rogério Sganzerla percebeu na impossibilidade de Welles sua possibilidade. Distribuiu em quatro produções a história da visita do cineasta ao Brasil, um misto de especulações e fatos. Quem sabe a única certeza que se mantém intacta nas duas tramas – a real e a ficcional – é a excelência de Grande Otelo. Ou melhor, Sebastião Bernardes de Souza Prata. Também é sinônimo de riso, drama, cor, calor e intensidade.
As histórias de Grande Otelo e Orson se misturam tanto na vida, quanto nos documentários encenados de Sganzerla. Deixe-se envolver por essas descontinuidades históricas – dos homens, do cinema e do país. Acompanhe a tetralogia através do link.
Nem Tudo É Orson Welles
Era meados da Segunda Guerra Mundial quando Orson Welles visitou o Brasil em uma missão diplomática disfarçada de filmagem para um documentário sobre a América Latina, sob o título It’s All True, em português, é tudo verdade. Portanto, independentemente das intenções, não era um filme de mentira, principalmente para Welles, que talvez acreditasse no cinema mais do que em qualquer outra coisa. Welles se entregou de corpo e alma, segundo dizem, para essa produção que acabou interrompida na metade, seus rolos foram encontrados anos depois no porão de um estúdio, depois de ter-se acreditado que haviam sido jogados no mar. Um filme que tornou-se eternamente incompleto. E a vinda de Welles é, de certa forma, uma história sobre interrupções.
É difícil mensurar o que é verdade e o que é mentira em Orson Welles e sua visita ao nosso país, já que sua existência é formada de especulações. Jovem diretor confiante e destemido, esse tipo de personalidade acaba se retroalimentando por todos aqueles que querem contribuir com alguma especulação para a construção do mito. Rogério Sganzerla foi um desses assombrados pelo incerto. Além de companheiro de Helena Ignez, Sganzerla foi crítico, diretor de cinema e assumidamente fascinado pelo diretor norte-americano. Considerava Welles um fenômeno da comunicação do século XX e a vinda dessa figura ao país mais comunicativo das américas (quem sabe do mundo), criou uma série de incomunicabilidades que intrigaram o diretor brasileiro desde muito jovem.
Sganzerla realizou quatro filmes sobre esse episódio durante a segunda metade de sua carreira. Nem tudo é verdade (1986), Linguagem de Orson Welles (1991), Tudo é Brasil (1997) e Signo do caos (2003) são embaralhamentos de documentos e encenações que tentam de alguma forma ilustrar essa visita e a personalidade desse explorador. Investigam o desconhecido, assim como fez Welles no Brasil, que se integrou com facilidade à nossa paisagem. Não sei se por puro deslumbramento tropical, típico do explorador colonizador do bem, tentando descrever as coisas sem usar a palavra “exótico”; ou se Welles de fato se sintonizou com alguma parte transcendental do “ser” brasileiro, essa coisa de lidar constantemente com o inesperado.
Mas nem tudo é Orson Welles. Figura fundamental desse processo de abrasileiramento do diretor é Grande Otelo, ator, compositor, cantor e “cachaceiro presidente”, segundo consta na “carteirinha de cachaceiro” dada à Welles em uma das sabe-se lá quantas idas dos dois ao bar. Sebastião Bernardes de Souza Prata, o Grande Otelo, não apenas atuou em algumas cenas do incompleto It’s All True, também esteve em mais de cem filmes, produções de televisão, palcos e rodas de samba. Na época ainda não havia feito metade do que chegou a fazer, mas foi reconhecido por Welles como o maior ator brasileiro. Existiu, nessa relação, a lenda da promessa de levá-lo para Hollywood para tornar-se estrela, o que nunca se concretizou.
Sganzerla, assim como outros diretores da sua geração, admirava Grande Otelo. Deu à ele destaque nessa intermediação entre o ator brasileiro e o estadunidense. Otelo como personificação de um cinema nacional pulsante, cuja voz remonta à esse passado sempre meio próximo e meio distante demais, de um mundo que explodia numa guerra mundial enquanto o Brasil “crescia” para os padrões imperialistas e os EUA ainda tinham algum interesse em estreitar convenientemente as relações com o povo latino-americano. Mas é sabido que essa presença estadunidense em nossas terras favoreceu uma interferência no campo político, culminando, entre outras coisas, no Golpe Militar, em 1964. O resultado disso em nosso cinema foram os apagamentos, as perseguições, os exílios, as carreiras impossibilitadas. It’s All True nunca foi completado, assim como a promessa de um movimento cinematográfico extremamente rico surgido na geração de Sganzerla, nas décadas de 60 e 70. Dada as proporções, principalmente de orçamento, a frustração de uma possibilidade impossibilitada existe tanto em Sganzerla, quanto em Welles nesse sentido.
Talvez o Brasil tenha sido arrebatador para os bolsos de seus produtores, assim como foi para Welles; ou talvez esses produtores não tenham se agradado com o olhar desse diretor diplomata voltado à um artista negro, como Grande Otelo, transbordando talento e brasilidade. Esses quatro filmes de Sganzerla investigam essas incompletudes, tendo a figura de Otelo como mediador, e esse novo ciclo da Sala Redenção pretende relembrar essa figura, cujo reconhecimento pode parecer só especulação para aqueles que dependem de mídias que monopolizam o imaginário artístico brasileiro, mas que é completamente real e verdadeiro para a história do nosso cinema. Como reflete Sganzerla sobre esse processo: “há certas verdades que surgem como blasfêmias e terminam como superstições.”
Texto: Victor Souza, bolsista da Sala Redenção e curador da mostra.
Confira a programação completa no site oficial da Sala Redenção clicando aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário