Sinopse: No Irã, um homem se depara com aquele que acredita ser seu ex-torturador. No entanto, diante desta pessoa que nega veementemente ter sido seu algoz, a dúvida se instala.
Jafar Panahi é um exemplo de artista que não se intimidou com a retaliação do governo Iraniano e continuou dirigindo filmes mesmo com todas as limitações que foram impostas contra ele. Eu o conheci justamente no documentário "Isso Não é Um Filme" (2011), longa que revelou a sua pessoa e feito de forma clandestina para não ser pego pelas autoridades locais. A proeza prosseguiu com "Táxi Teerã" (2015). onde ele o fazia dirigindo um veículo e captando através de sua câmera ação e reação de determinados personagens que cruzam durante o seu trajeto.
Curiosamente, se percebe que nas suas obras seguintes, "Três Faces" (2018) e "Sem Ursos" (2022) há uma liberdade um pouco maior do realizador em ser ele mesmo e criando tramas que falam sobre o estado atual do Irã como um todo. Porém, quanto mais se informa, mais se revela o fato que as restrições nunca acabaram, mas o realizador procurou acima de tudo colocar em prática os seus projetos mesmo correndo certo risco. "Foi Apenas Um Acidente" (2025) revela um cineasta autoral ainda mais corajoso e revelando o quanto a sombra do autoritarismo nos assombra de um modo jamais visto.
Na trama, o mecânico Vanid foi, certa vez, aprisionado pelas autoridades iranianas, interrogado e torturado sem escrúpulos. Um dia, um homem chamado Eghbal entra na oficina onde Vanid trabalha. Um acidente envolvendo um cachorro danifica o carro de Eghbal e o coloca no caminho de Vanid, numa artimanha do destino que irá mudar por completo a vida de ambos. Vanid reconhece Eghbal como o seu torturador pelo som da perna prostética, mas ao tentar matá-lo ele fica na dúvida se está diante do seu algoz e fazendo com que isso envolva outras pessoas que haviam sido torturadas no passado.
Para aqueles que não sabem, a expressão efeito borboleta significa que pequenas situações geram grandes efeitos, destacando a interconexão e a sensibilidade dos sistemas dinâmicos às condições iniciais. Jafar Panahi, por sua vez, usa essa ideia em potência máxima a partir do atropelamento que acontece nos minutos iniciais do filme e que acabam desencadeando efeitos de uma maneira jamais vista. Uma vez que testemunhamos a confusão que isso causa, temos uma noção do que um simples passo em falso pode causar na vida das pessoas.
Porém, esse passo em falso serve mais para se explorar as consequências dos horrores vindos do passado, onde um indivíduo se torna um monstro nas lembranças de outros, mas talvez ele seja somente o peão de um sistema autoritário muito maior do que imaginamos. Jafar Panahi procura não simplificar sobre quem é o mocinho ou o bandido na trama, mas sim retratando pessoas comuns que tiveram as suas almas partidas ao meio ao se submeterem a torturas psicológicas e cuja cicatrizes emocionais quase não cicatrizam. Porém, a dúvida levantada na trama nos faz crer que essas pessoas possuem os seus limites perante a possibilidade de tirar uma vida e fazendo com que a eventual morte do algoz não se torne um alívio, mas sim uma continuidade da dor que eles ainda carregam.
Curiosamente, é incrível como o cineasta consegue criar uma trama que transite entre elementos dramáticos, de suspense e até mesmo de humor, pois as situações que os personagens principais se envolvem são de uma maneira absurda, mas não deixando de ser realista. Na jornada que ocorre dentro do furgão, vemos os personagens não somente saber ao certo se pegaram a pessoa certa, como também driblar os olhares daqueles que presenciam aquela situação inusitada. É como se estivéssemos vendo Jafar Panahi a partir dos seus personagens, sendo que não me surpreenderia se todos ali envolvidos estivessem com certo receio pelo conteúdo que estava sendo filmado.
Tudo isso moldado de uma forma simples, mas ao mesmo sintetizando todo o lado autoral e perfeccionista do modo de filmar do realizador. Os meus momentos preferidos acabam sendo justamente aqueles em que há um plano-sequência, onde os personagens dialogam através de suas desavenças e desencadeando situações que nos dá a entender que a improvisação foi a ideia primordial durante as filmagens. Ao mesmo tempo, o enquadramento sem cortes faz com que determinadas passagens se tornem até mesmo angustiantes, principalmente uma que ocorre na noite na reta final da trama e que tão cedo a gente não se esquece.
Porém, nada nos prepara para os minutos finais surpreendentes, onde em um plano fechado somente vemos o protagonista de costas e ouvimos um som que o assombra de uma forma jamais vista. A cena por si só me lembrou o final do brasileiro "Bacurau" (2019), onde o fascismo é somente enterrado, mas deixando uma brecha para que ele volte em breve. O realizador, portanto, nos diz que jamais podemos dar as costas para o passado sombrio, pois ele pode voltar a qualquer momento.
"Foi Apenas Um Acidente" é uma bela fusão entre a simplicidade e a mão autoral de se filmar de Jafar Panahi e cujo resultado extrapola qualquer perspectiva que estávamos construindo sobre o filme como um todo.
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