Sinopse: Martha e Ingrid são duas amigas de longa data, mas que não se viam há um bom tempo. Quando Martha fica doente, elas retornam a se verem e juntas se unem neste momento tão delicado.
Pedro Almodóvar já estava namorando a ideia de trabalhar em obras de língua inglesa já algum tempo. Embora isso possa soar estranho em um primeiro momento, ele prova que ainda manteve a sua visão com relação ao mundo mesmo em território americano como no curta "Voz Humana" (2021) e na média metragem "Estranha Forma de Vida" (2023). Em seu primeiro longa-metragem em língua inglesa, "O Quarto ao Lado" (2024) revela um Almodóvar mais sintonia com relação ao mundo e revelando os seus pensamentos através das duas protagonistas da trama como um todo.
Na história, baseada na obra da escritora Sigrid Nunez, acompanhamos sobre as jornalistas Ingrid (Julianne Moore) e Martha (Tilda Swinton), que foram muito amigas no passado quando trabalhavam juntas em uma mesma editora. Devido aos trabalhos distintos, isso fez com que elas se distanciassem ao longo dos anos, mas se reencontrando após Martha revelar para a sua amiga que está sofrendo de um câncer terminal. Em meio a isso, Ingrid carrega uma grande responsabilidade com relação a um pedido que Martha faz para ela.
Pode parecer estranho em um primeiro momento o filme ser em inglês e se passar inicialmente na cidade de Nova York. Porém, Almodóvar mantém as suas características intactas, ao fazer uma trama em que há várias passagens de que estamos diante de um teatro filmado e que nos relembra dos seus primeiros grandes sucessos como "Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos" (1988). Além disso, como não poderia deixar de ser em sua filmografia, o filme possui uma fotografia com cores quentes bastante vivas, como se quase a obra tivesse sido filmada nos tempos da technicolor.
Com relação a isso, é notório que Almodóvar faz, a partir de sua fotografia, uma homenagem ao pintor americano Edward Hopper, sendo que a pintura "A Arte Pessoas no Sol" realizada em 1960 é vista em uma passagem do filme e se casando com a sua proposta no decorrer da obra. Tanto o filme, como as pinturas de Edward Hopper, falam de uma sociedade com as suas vidas vazias, mesmo com todo o colorido e realizações que elas podem obter.
E as referências sobre as pinturas não param por aí, pois em um determinado momento da trama, onde ocorre um flashback, Almodóvar presta uma homenagem a pintura Christina's World, do artista americano Andrew Wyeth, em que simboliza a casa como sendo o centro de um mundo do qual não conseguimos escapar. Isso, portanto, se casa com a situação de ambas as protagonistas vistas na história, das quais retornam ao ponto zero de suas vidas para se unirem no momento mais delicado da vida de uma delas.
Com relação a essa amizade, Almodóvar constrói de forma serena, delicada e especialmente humana. O realizador até faz uma ligeira referência ao clássico "Persona" (1960), de Ingmar Bergman em um determinado enquadramento de cena, mas aqui não há troca de papéis de ambas as atrizes, pois as suas personalidades se diferem uma da outra, mesmo quando a ligação entre as duas se torna bastante intensa. Curiosamente, há uma questão da ideia do duplo vista no ato final do filme, sendo que aqui Almodóvar faz uma ligeira homenagem ao clássico "Um Corpo Que Cai" (1958) de Alfred Hitchcock, mas que simboliza somente um desejo de Ingrid que não pode mais ser alcançado após os desdobramentos da história.
Falando sobre o mestre do suspense, é notório que desde "Julieta" (2016) eu sinto que Almodóvar presta uma homenagem ao realizador inglês em algumas passagens de suas tramas recentes. Porém, mesmo de forma subliminar, isso é notado principalmente em suas trilhas sonoras e das quais são compostas pelo seu antigo colaborador, o compositor Alberto Iglesias. Nota-se, por exemplo, que as suas notas remetem até mesmo aos melhores trabalhos do compositor Bernard Herrmann e, portanto, não estranhe que ao soar as suas notas o clássico "Psicose" (1960) surge em nossas cabeças.
Falando em "Julieta", é notório também que desde aquele filme Almodóvar percebe as mudanças retrógradas e significativas que acontecem no mundo, seja com relação ao mundo político, religioso e as mudanças climáticas que nos aflige a todo momento. Em um determinado momento, por exemplo, o personagem Damian, interpretado pelo veterano John Turturro, faz um pesado desabafo para a personagem Ingrid, desde os retrocessos que andam acontecendo, como também pela possibilidade de estarmos nos encaminhando para a extinção. Neste momento, é mais do que nítido que Almodóvar faz de Damian o seu Avatar para se expressar, mesmo quando as palavras sejam meramente jogadas ao vento, mas que cumpre com certo êxito.
Porém, acima de tudo, o filme toca em um assunto espinhoso com relação a eutanásia, sendo algo revisitado em títulos recentes como "Está Tudo Bem" (2022) de François Ozon. Almodóvar, por sua vez, procura explorar esse assunto da forma mais humana possível, sendo que Martha não demonstra dúvidas na sua escolha, mas sim somente o desejo de obter uma transição tranquila. O cineasta procura não se estender com relação aqueles que são contrários a essa escolha, sendo que isso é somente colocado em pauta de forma rápida no final da obra e cujo personagem contrário nada mais é do que uma síntese sobre os fanatismos religiosos que rondam pelo mundo.
Tanto Tilda Swinton como Julianne Moore estão ótimas em seus respectivos papéis, sendo que ambas são uma representação da forma como Almodóvar enxerga o universo feminino desde o início de sua carreira e que também fala da sua própria pessoa. Das duas, Swinton é a que melhor se sobressai em cena, ao construir uma personagem cheia de camadas, onde os erros do passado lhe assombram, mas não influenciando na sua decisão como um todo. Já Moore seria uma representação do nosso olhar perante aquele cenário, que nos convida para refletirmos com a mente aberta e para ouvirmos o que a personagem Martha tem a dizer no decorrer dessa encruzilhada.
Ao final, constatamos que não é somente um filme de Almodóvar em sua essência, como também uma obra que fala sobre a solidão que a vida pode nos provocar e tornando ela cada vez mais vazia na medida em que o tempo passa. Mesmo em território americano, o tema é universal, do qual Almodóvar poderia ter feito na sua amada Barcelona, mas optando em explorar novos territórios, mas sempre sendo ele mesmo. Ao meu ver, a temática de Almodóvar pode ser degustada em qualquer lugar e cujo sabor sempre nos soará familiar.
"A Porta ao Lado" é uma delicada história de amor e amizade sobre duas mulheres perante uma realidade vazia, mas que obtêm cores e vida nas mãos autorais de Pedro Almodóvar.
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