Roman Polanski é um cineasta autoral, porém, o mesmo procura não ficar preso exatamente a um gênero. Ao mesmo tempo, eu acredito que em suas obras ele fale um pouco sobre a sua pessoa, ou simplesmente uma forma de enfrentar os seus medos e arrependimentos que guarda para si ao longo dos anos. "O Pianista"(2002), por exemplo, talvez tenha sido uma forma de exorcizar um passado traumático, já que o realizador perdeu os seus pais logo cedo nos campos de concentração. Ao mesmo tempo, é um diretor experimental, ao conseguir alinhar a linguagem cinematográfica com a teatral e realizando obras como "Deus da Carnificina" (2012).
Porém, tem alguns filmes que eu fui conhecer posteriormente, como no caso deste agora "A Morte e a Donzela" (1994) e que fez com que eu percebesse que esse namoro pelo universo teatral não havia começado no início desse século. O roteiro é baseado em uma peça de teatro de Ariel Dorfman, um chileno exilado que escapou do regime de Augusto Pinochet. Portanto, a trama gira em um país sul-americano após a queda da ditadura, onde Paulina Escobar (Sigourney Weaver), a mulher de Gerardo Escobar (Stuart Wilson), um famoso advogado, fica sabendo no rádio que Gerardo deverá chefiar as investigações das mortes ocorridas no regime militar. Quando Gerardo a chega o vê acompanhado de um estranho que o socorreu na estrada, mas quando o desconhecido retorna à casa ela o identifica pela voz como sendo Roberto Miranda (Ben Kingsley), o homem que a torturou e a estuprou quando ela fazia militância política.
Pode-se dizer que a obra é uma crítica ferrenha contra todas as ditaduras militares que ocorreram na América do Sul nos anos sessenta, setenta até os anos oitenta. A informação de que o filme é baseado em uma peça escrita por um dramaturgo Chileno faz com que o cinéfilo se localize melhor com relação aquele lugar em que a trama se passa, muito embora isso pouco importa, pois o que vale é o fato de a história representar inúmeras que ocorram nos tempos de chumbo. Sigourney Weaver nos brinda com uma atuação poderosa, pois já nos primeiros minutos observamos todos os sinais de alguém que sofreu nas mãos de torturadores e cuja cena em que ela vai jantar dentro de um armário simboliza o fato que ela não desvencilhou de situações em que ela não tinha nada, a não ser o objetivo de continuar viva.
Pelo fato do filme se passar em um único cenário, ou seja, dentro da casa do casal central, o filme ganha ares de suspense psicológico, dos quais se tornam cada vez mais sufocantes na medida que a personagem de Weaver transita entre a lógica e o desiquilíbrio, principalmente a partir do momento em que ela encara o que ela acredita ser o seu algoz vindo do passado. Já Stuart Wilson cria para o seu personagem uma espécie de equilíbrio com relação aos fatos, mas que aos poucos começa a se deteriorar quando não sabe mais em que direção tomar, se acredita em sua esposa, ou na inocência do homem em que ela acredita ser um verdadeiro monstro. Já Ben Kingsley nos brinda com uma atuação ambígua, já que quase nunca sabemos ao certo se ele é culpado ou inocente com relação aos fatos, mas aos poucos tiramos nossas próprias conclusões a partir de suas próprias palavras e ações ao longo do percurso.
Na medida em que o tempo avança o clima fica cada vez mais sufocante, cuja fotografia que transita entre as cores quentes e a escuridão de uma noite chuvosa alimentam ainda mais essa sensação. Assim como Brian De Palma, o realizador também é um grande adorador de Alfred Hitchcock e não me surpreenderia se o mesmo tivesse buscado inspiração no que o mestre do suspense havia feito. Vale destacar o ótimo trabalho do compositor Wojciech Kilar e cuja sua trilha aqui nos lembra os melhores momentos dos filmes de Hitchcock.
Falando nisso, o longa presta uma bela homenagem a Schubert com a sua clássica música "A Morte e a Donzela", que dá título ao filme e se torna peça fundamental dentro da trama. Aos poucos, nota-se que o desequilíbrio entre os personagens, assim como o ambiente dentro da casa, que começa a desmoronar e tudo que resta é uma confissão, mesmo na possiblidade dela soar falsa. A meu ver não há falso testemunho quando ocorre no limiar da trama, pois talvez o próprio realizador esteja usando os seus personagens como avatares para confessar sobre a sua verdadeira pessoa.
No passado, após a sua esposa Sharon Tate ter sido brutalmente assassinada de forma brutal em 09 de agosto de 1969 por Charles Manson e integrantes do culto o qual liderava, anos depois, o diretor foi condenado por estupro de uma garota chamada Samantha Geimer e que tinha apenas 13 anos de idade em 1978 e cujo crime ocorreu na mansão do ator Jack Nicholson. Desde então Roman Polanski viveu na Europa, para não ser preso. Em outubro de 2013, Samantha Geimer afirmou, durante a apresentação do seu livro de memórias, "The Girl: A Life in the Shadow of Roman Polanski" ("A menina: Uma vida na sombra de Roman Polanski"), em Paris, que há "muito tempo" perdoou o cineasta.
Porém, na minha opinião, talvez o próprio cineasta não tenha se perdoado pelo que cometeu e neste filme eu percebo que ele assume isso através do personagem de Ben Kingsley. No ápice da trama, quando o mesmo não vê saída, ele decidiu assumir as atrocidades que ele havia cometido no passado contra a personagem de Sigourney Weaver, mas sinto que o personagem de Kingley sai de cena e entra as palavras de Polanski e assumindo, enfim, a culpa. É como se o cenário que ele descreveu através do personagem foi a forma como ele viu na mansão do ator Jack Nicholson e fazendo com que cometesse tal ato.
Quem for ler esse texto e logo em seguida assistir ao filme cabe cada um irá tirar as suas próprias conclusões. Roman Polanski é um artista, porém, falho como ser humano e cabe a justiça julgá-lo, mas antes disso talvez fosse realmente necessário ele assumir, não com palavras, mas sim através da sétima arte da qual alavancou a sua carreira. Em tempos de cancelamento, principalmente como a internet que torna tudo isso mais fácil, cabe não julgarmos o artista e a sua obra, mas sim a sua pessoa e do qual os seus filmes talvez tenham-lhe dado uma saída.
"A Morte e a Donzela" é mais do que um belo suspense, como também uma confissão camuflada do diretor Roman Polanski.
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