Quando termina dezembro, e começa janeiro, a cidade de Porto Alegre é tomada por um calor escaldante, do qual deixa qualquer um desanimado e, principalmente, nos deixando apreensivos com relação ao futuro indefinido com a chegada do novo ano. A cidade se torna vazia, ao ponto que os poucos que ficam pelas ruas se tornam fantasmas andarilhos, com poucas opções, a não ser trabalhar ou encarar o calor de frente. Os bem afortunados fogem para o litoral para curtir a praia por, ao menos, três meses e se esquecendo da capital gaúcha queimando e com os restantes de pouca sorte lá dentro.
O ano de 2022 mal começou e ele já é escaldante para os gaúchos, não só devido as temperaturas elevadas, como também com relação as mudanças e retrocessos políticos que tornam o nosso futuro cada vez mais indefinido. Em tempos assim acabam nascendo em nós um conflito interior, em que nada mais faz sentido e fazendo nascer um desejo de nos jogarmos a própria sorte da qual, infelizmente, nunca vem. Mas os tempos escaldantes sempre estiveram aqui, seja há vinte anos atrás, ou até mesmo no início do século passado.
É por essa linha de pensamento que me veio à mente o curta metragem de animação gaúcha "Cidade Fantasma" (prêmio especial de animação no Festival de Gramado em 1999). Com roteiro de Adalgiza Luz e direção de Lisandro Santos, o curta conta a história de um jovem assalariado na cidade de Porto Alegre durante o verão, quando a cidade fica vazia e o calor lhe deixa sem muitas expectativas. Dublado pelo radialista Victor Hugo Schwengber, o protagonista não só reclama da forte onda de calor, como das coisas que lhe faz falta, desde uma tv a cabo, como também ar condicionado e pela falta de dinheiro.
O personagem é uma espécie de personificação de uma geração materialista dos anos 90, onde mais se reclamava da falta das coisas do que se preocupar com o mundo em volta. Além do traço do diretor, o curta tem a arte de Cláudia Barbisan, cuja as cores saltam da tela, como se elas sintetizassem o estado emocional do protagonista. Visto hoje, as cores quentes se tornam também uma representação de uma época mais inocente e dourada, cuja aquela jovem geração gaúcha mal tinha ideia do que deveria realmente reclamar da vida e do que estaria por vir em nosso país.
Na reta final da história, surge uma jovem (voz da atriz Letícia Liesenfeld), cuja a sua presença em cena muda o humor do protagonista e tornando o cenário, antes desolador com a cidade vazia de Porto Alegre, agora um pouco mais acolhedor. O epílogo do curta termina numa praia, porém, é inverno, onde ambos os personagens iniciaram uma relação e da qual o protagonista conta resumidamente sobre isso. Dá entender que ele começou a reclamar menos das coisas que ele não tinha, valorizando a pessoa que tinha do seu lado e partindo ambos ao rumo de um futuro desconhecido.
Esse rumo, aliás, é representado por um cenário ao fundo, onde o carro dos personagens se vai em direção a ele, do qual é representado por nuvens de cores sombrias de uma tempestade que está por vir. Se no recente longa metragem "A Frente Fria que a Chuva Traz" (2015), de Neville D’Almeida, os jovens protagonistas tinham certo vislumbre das mudanças que viriam assolar o Brasil, Cidade Fantasma, por sua vez, se torna muito mais poderoso em sua mensagem ilustrada e dita mesmo com os seus quase vinte anos de vida.
O curta metragem "Cidade Fantasma" não é somente uma ótima representação da geração gaúcha dos anos 90, como também teve o poder de profetizar o nosso presente e do futuro cada vez mais desolador e indefinido para todos nós.
NOTA: Assista ao curta clicando aqui.