Sinopse: Inverno,
1915. Contra a sua vontade, a escultora Camille Claudel (Juliette Binoche) é
internada pelos familiares em um asilo psiquiátrico mantido por religiosas, e
permanece durante anos na instituição, sem poder sair. Ela afirma várias vezes
que está perfeitamente sã, mas desenvolve uma mania de perseguição, acreditanto
que seu ex-amante Auguste Rodin conspira contra ela, e que todos no asilo
tentam envenená-la. Camille passa os dias cercada por internos com deficiências
mentais e surtos psicóticos graves, não tendo ninguém com quem conversar. Sua
única esperança é uma carta enviada clandestinamente ao irmão Paul (Jean-Luc
Vincent), implorando por sua liberação. Quando Paul confirma que vai visitá-la,
Camille aguarda com impaciência a oportunidade de mostrar ao irmão que pode
viver em sociedade.
À aprisionada Camille
observada pelo cinema de Bruno Dumont (Fora Satã) em Camille Claudel, 1915 não é oferecido
o contraplano, o horizonte. Quase tudo se dá no plano. Juliette Binoche
percorre uma extensa partitura para dar uma cara às emoções. Mas o que olha o
rosto dessa mulher? Qual ponto da paisagem – se é que há um – lhe chama a
atenção? O que está nesse contraplano oculto que completaria o que vemos no
plano?
Dumont sonega o
contracampo. Quando o entrega, é a imagem do desespero. Uma árvore
desavergonhadamente seca. Uma colega de hospício dizendo coisas desconexas. Uma
enfermeira com olhar de falsa caridade. Há também, por vezes, o horizonte, a
natureza, a vegetação bem distribuída. Mas Camille Claudel, 1915 se concentra
tanto na personagem a observar algo que consolida, deliberadamente, a incômoda
sensação de que esse lugar que ela enxerga fica mais e mais inalcançável.
Acontece, então, uma
pequena inversão de sentido. O plano geral, que poderia ser o signo da
liberdade dada a imensidão do horizonte, torna-se a representação do difuso. A
paisagem é tão grande que se torna inatingível: como chegar àquela montanha no
topo do quadro se é preciso atravessar tantas árvores?
Quando essa
significação do plano geral fica clara e a percepção do descompasso na relação
plano/contraplano se aguça, não há outro caminho: Camille está definitivamente
presa.
Presa, diz a
impressão inicial, em sua loucura. Afinal, está num hospício. Mas até mesmo
essa afirmação inicial da insanidade é questionada. Novamente, o embate se dá
no plano. Camille prepara a própria comida, pois tem permissão por causa do
medo do envenenamento (“eles querem me ver morta”, “é um complô do Rodin”). Ao
comer, senta-se à extrema esquerda do quadro; à direita, outra interna do
hospício; ao centro, uma lastra (aparentemente um exaustor) repartindo o quadro
ao meio, explicitando a divisão entre ela e as outras.
Camille, nos diz
novamente o plano, não pertence àquele lugar.
Se o asilo de
Montfavet não é o seu habitat, então porque está presa? Entra em cena seu
irmão, Paul Claudel (Jean-Luc Vincent, espetacular) um escritor católico fervoroso apaixonado pela poesia de
Rimbaud – se é que tal combinação é realmente possível sem implicar
contradições. Paul é a peça que oferece os dados biográficos que faltavam:
Camille Claudel foi uma grande escultora. Tão fenomenal que quebrou o machismo
numa atividade artística exercida por homens. Chamou a atenção de Rodin, de
quem se tornou aprendiz. Amaram-se, mas o parceiro não quis assumir
oficialmente a relação. Camille perdeu coesão mental.
Se Camille é o plano,
Paul é o contraplano. Se Paul é o horizonte que Camille olha, a esperança de se
ver liberta, certamente não há saída. Outrora apegado à irmã, na época que se
desenrola o filme ele já é ressentido pelo protagonismo de Camille, crítico a
seus “pecados”.
Se até então a
direção de Dumont trabalhava com a sugestão de fatos e sensações, explorando o
desequilíbrio no plano/contraplano, quando a visita de Paul à irmã é anunciada
o diretor de Camille Claudel, 1915 torna-se mais incisivo. Paul é um hipócrita
que desfruta de poder numa sociedade voltada ao privilégio do homem. Camille
sofrerá tanto como a heroína de Bellocchio em Vincere.
Basta atenção aos
detalhes, especialmente ao diálogo entre irmão e irmã, para perceber rachaduras
no relato de Paul sobre os fatos da vida de Camille. Pois Paul veste cada vez
menos o personagem do irmão, de forma a dar espaço ao do juiz divino. E como
tal é imperioso condenar Camille por seus “pecados” na Terra: permanecer
solteira, amar um homem casado, cultivar independência, brigar pelo direito
sobre o próprio corpo, esculpir homens nus.
Presa a memórias
antigas, Camille enxerga Paul como seu irmão. Paul enxerga Camille como uma
pecadora.
Num brilhante procedimento
narrativo, Dumont suprime o tempo e condensa num único plano, o final, a
partitura de emoções percorridas pelo rosto e pelo corpo de Juliette Binoche
durante o filme. Não fosse, talvez, a existência de uma cinebiografia
tradicional e linear – Camille Claudel (1988), dirigida por Bruno Nuytten com
foco na relação Camille/Rodin no período de surgimento e auge da escultora –,
Dumont poderia sequer ter chegado à liberdade não só de escolher esse recorte
de uma biografia extensa (falar dos mecanismos de aprisionamento), mas também
de encontrar a síntese num único plano: o da elegância brutal.
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