Akira Kurosawa foi um cineasta a frente do seu tempo, mas que nunca se esquecia com relação a história do passado do seu país e por conta disso vemos em seus filmes uma síntese dos altos e baixos do Japão como um todo. Embora "Rashomon" (1951) seja baseado nos contos do escritor Ryunosuke Akutagawa pode-se dizer que o cineasta criou uma espécie de paralelo com relação ao estado de espírito em que os japoneses viviam naqueles tempos, pois não fazia muito tempo que eles sofreram com a bomba atômica jogada contra Hiroshima.
O filme explora a faceta real do ser humano em não saber assumir os seus próprios erros e culminando assim em diversas mentiras que acabam gerando diversas formas de se contar determinado evento. Kurosawa explora, portanto, o lado sombrio das pessoas ao se entregarem ao seu lado mais selvagem e primitivo, a partir do momento em que se encontram frente a frente com os seus próprios erros. Tudo isso moldado em uma simples trama no meio da floresta, mas sendo revista por diversas formas e desfechos.
A trama começa no Japão do século XI. Durante uma forte tempestade um lenhador (Takashi Shimura), um sacerdote (Minoru Chiaki) e um camponês (Kichijiro Ueda) procuram refúgio nas ruínas de pedra do Portão de Rashomon. O sacerdote diz os detalhes de um julgamento que testemunhou, envolvendo o estupro de uma jovem chamada Masako (Machiko Kyô) e o assassinato do marido dela, Takehiro (Massayuki Kyô), um samurai. Em flashback é mostrado o julgamento do bandido Tajomaru (Toshirô Mifune), onde acontecem quatro testemunhos, inclusive de Takehiro através de um médium. Cada um é uma "verdade", mas qual é a legitima?
O flashback já não era uma novidade naqueles tempos, pois basta pegarmos o clássico "Cidadão Kane" (1941) como um belo exemplo de como começou a ser usado esse método narrativo. Porém, "Rashomon" foi pioneiro na forma de testemunharmos a mesma história, mas com consequências distintas uma da outra e fazendo com que não tenhamos uma resposta fácil sobre de qual delas era verdadeira, mas sim julgamos nós mesmos após a sessão sobre o que havíamos testemunhado. Curiosamente, o investigador jamais é mostrado, sendo que os envolvidos somente conversam na frente da câmera, como se nós assumíssemos esse papel e por assim julgando os fatos.
Akira Kurosawa procura colocar os seus respectivos personagens frente a frente com os seus defeitos interiores, como se houvesse uma espécie de teste iminente para que eles se alto descobrissem e assim culminado em um caminho sem volta para eles. Dentre os personagens principais se destaca principalmente o bandido Tajomaru, interpretado de forma assombrosa por Toshirô Mifune e que se tornaria parceiro do cineasta em diversos filmes. O seu personagem, por sua vez, é uma entidade da natureza movida pelas raízes primitivas, das quais o fazem quase se tornar um animal perante o desejo que ele tem pela mulher que se torna o catalizador de todas as ações geradas no decorrer da trama.
Tecnicamente o filme é um verdadeiro show de imagens inesquecíveis, das quais saltaram aos olhos para os cinéfilos da época. Pela primeira vez vemos personagens adentrarem uma floresta de uma forma verossímil, cuja câmera vai sempre acompanhando os mesmos e nos passando a sensação quase documental para dizer o mínimo. Isso se deve graças ao fato do aparelho se encontrar em determinados trilhos, fazendo com que interprete jamais seja perdido de vista e obtendo assim essa sensação de câmera sempre em movimento constante na medida em que os personagens vão seguindo em frente.
A edição, por sua vez, é quase frenética em algumas passagens da trama, principalmente quando o bandido e a garota correm no meio da floresta e não devendo em nada em termos de ritmo se formos comparar ao que é feito hoje em dia. Vale destacar a belíssima fotografia em preto e branco, desde a que foi vista no templo de Rashomon que dá título ao filme, como também a que é vista na floresta, fazendo com que a mesma quase se torne uma pintura rica em detalhes em diversos frames. Curiosamente, kurosawa usou diversos espelhos para se refletir a luz do sol para destacar as expressões dos rostos dos personagens, sendo que o próprio sol é visto de uma forma até então inédita na história do cinema.
Em uma época em que o Oscar não premiava filmes estrangeiros em uma categoria específica, os membros da academia se viram obrigados a criar uma estatueta para o ano de 1952 para ser entregue especialmente a esse filme. Não demorou muito para os realizadores criarem uma categoria e muito se deve a genialidade de Kurosawa. Antes disso, porém, o filme havia levado o Leão de Ouro no Festival de Veneza, além de outros diversos prêmios que fizeram somente se tornar ainda mais fortalecido e se tornando um dos mais importantes filmes do início dos anos 50.
Mesmo já tendo se passado vários anos se percebe o quanto o filme envelheceu muito bem, sendo que se tornou uma fonte de influência inesgotável e que é perceptível até hoje. Não me admira, por exemplo, que Quentin Tarantino tenha se inspirado neste filme na realização de suas obras, pois em alguns casos ele cria uma linha narrativa não linear e que, por vezes, lembra essa obra de Kurosawa. E se alguém ainda tiver dúvidas com relação a sua influência basta pegarmos como um belo exemplo "Herói" (2002) de Zhang Yimou, que embora possuem tramas distintas, a forma de se apresentar a mesma trama com consequências diferentes possuem similaridade quase explicita.
No geral, o filme fala sobre a selvageria do ser humano em se alto se destruir, mas ao mesmo tempo buscando uma redenção em seu limiar. Portanto, o final onde mostra o lenhador buscar uma maneira de se perdoar pela sua possível falta de sinceridade com relação aos eventos da trama, talvez seja um ato simbólico em provar que ainda há esperança para a humanidade mesmo quando a mesma ainda será posteriormente julgada pelas suas más ações e seus maus pensamentos. Talvez uma redenção que ainda hoje a humanidade busca incansavelmente ao longo do percurso.
Mais de sessenta anos já se passaram, mas "Rashomon" continua sendo um filme pioneiro, a frente do seu tempo e forte em sua análise sobre o que nos faz realmente ser seres humanos perante a selvageria do mesmo.
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