Durante os anos 50, enquanto o cinema norte americano sofria com as regras do Código Hays, os demais países apresentavam filmes mais corajosos, ousados e dos quais serviram como modelo para a formação de futuros cineastas. Mesmo com algumas regras impostas pela censura, o cinema britânico, por sua vez, sempre ousou em dar um passo adiante se for comparado ao que era apresentado no cinema norte americano naqueles tempos longínquos. Foi graças ao estúdio inglês Hammer, por exemplo, que os monstros clássicos ganharam cores, sangue e revitalizando o gênero de horror como um todo.
Do universo inglês saiu também diretores consagrados e que, talvez, o melhor exemplo tenha sido o mestre do suspense Alfred Hitchcock. Embora tenha sofrido nas mãos de produtores ao desembarcar em Hollywood no início da década de 40, isso não o impediu de elaborar obras de sua autoria. Em 1960, por exemplo, realizou a sua maior obra prima, "Psicose", um filme a frente do seu tempo e que desafiou a censura como um todo. O ano de 1960, aliás, foi o ano que começaram a surgir cada vez mais filmes de suspense diferenciados e cujo os vilões não eram monstros saídos de um castelo mal-assombrado, mas sim verdadeiramente humanos.
Foi um período também que as visões com relação sobre o bem e o mal, antes bem definidas, começaram a ser questionadas. Por mais que Hollywood quisesse manter uma fantasia plástica para ser vendida para a massa, com os seus gêneros musicais e faroestes se encaminhando para o seu esgotamento, uma hora ou outra a bolha viria a estourar. O ano de 1960 provou isso, não somente graças a “Psicose”, como também com o filme britânico "A Tortura do Medo".
Dirigido por Michael Powell, do filme "Sapatinhos Vermelhos" (1948), o filme conta a história de Mark Lewis (Karlheinz Böhm) que é cameraman de um estúdio britânico. Obcecado em capturar a expressão de medo no rosto das pessoas, ele assassina mulheres para deixar tudo devidamente registrado em seus filmes pessoais. Quando criança, Lewis foi usado pelo pai num estudo sobre psicologia do terror, sendo submetido a cruéis experiências. Agora ele planeja montar um documentário com as doentias imagens que vem produzindo durante os seus crimes cometidos.
O filme já começa fora do convencional para a época, pois se inicia com uma câmera objetiva, ou seja, testemunhamos alguém usando-a e filmando sua futura vítima. A cena, aliás, não é somente criativa, como também serviu de inspiração para cineastas que viriam posteriormente. Basta a gente se lembrar do início do clássico "Um Tiro na Noite" (1981), de Brian de Palma, para nos darmos conta que Michael Powell fez escola.
Com um roteiro criado pelo dramaturgo Leo Marks, o filme desconstrói fórmulas já manjadas dentro do cinema como um todo. Para começar, já sabemos desde o princípio sobre quem é o vilão da história, onde o acompanhamos para compreender a sua real natureza e ao ponto de simpatizarmos com ele mesmo com os seus atos inconsequentes. Karlheinz Böhm tem uma atuação fantástica, cujo o olhar do seu personagem enxergamos um ser trágico e atormentado pelos seus próprios demônios vindos do passado.
Passado esse que é, gradualmente, apresentado através da curiosidade da personagem Helen (Anna Massey) e da qual se torna uma representação do cinéfilo em cena com relação ao universo particular e misterioso de Mark. Aliás, é através do passado do protagonista que Michael Powell disseca ao estremo a questão do voyeurismo e que determinados cineastas já haviam anteriormente dado sinais de interesse sobre isso. Se o próprio Hitchcock já havia explorado a questão no seu clássico "Janela Indiscreta" (1954), Michael Powell vai além com relação a essa obsessão das pessoas em observar umas às outras e criando assim um prenúncio sobre o que viria surgir na vida social das pessoas no futuro.
Visualmente, com um belíssimo technicolor, o filme serviria de inspiração, não somente para os cineastas norte americanos, como no caso do já citado Brian de Palma, como também de outros vindos de outros países. Testemunhar o filme foi me relembrar das obras de cineastas italianos, como no caso de Dario Argento e, principalmente, Mario Bava e que com certeza beberam da fonte de inspiração vinda desse filme britânico. Curiosamente, o filme foi mal avaliado pela crítica e se tornando um fracasso público na época.
Assim como inúmeros filmes a frente do seu tempo, "A Tortura do Medo" teve que passar por uma penosa gestação para ser novamente reavaliado e reconhecido. Com o tempo, o filme passou a ser cultuado e ganhando o status que sempre mereceu como obra prima. Mesmo com o seu final um tanto que questionável, é inegável que o filme foi muito além de sua proposta inicial, ao criar personagens complexos, trágicos e verdadeiramente humanos.
"A Tortura do Medo" é cinema de qualidade, sobrevivente ao seu próprio tempo e abrindo uma janela sobre o que viria para o cinema no futuro.
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