Chegamos ao ano de 2020 e junto com ele, uma grande crise sanitária, sem indícios de término. Identificamos nesta pandemia chamada de Corona vírus, ou mais conhecida como Covid-19, que assola o mundo inteiro, algumas características inseridas no cinema.
Bacurau, é um filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Lançado em 2019, este filme apresenta diversos significados simbólicos e bastante representativos do Brasil. Uma das diversas características marcantes da película é que, em sua totalidade, ele aborda temas que parecem ser uma distopia tais como, políticos corruptos, drogas, prostituição, diferenças entre raças e a visão sobre o outro. Os pontos apontados são de um filme com uma realidade baseada em fatos porém, em Bacurau, podemos perceber um Brasil, com estéticas de fome, sonhos e uma pedagogia que paira a violência (Bentes, 2019).
De acordo com Bentes (2019), o filme Bacurau se aproxima dos filmes de Glauber Rocha como “Deus e o Diabo na terra do Sol” de 1964 ou de “O Dragão da maldade contra o santo Guerreiro, de 1969”, devido a sua “invenção de um imaginário rural brasileiro catártico, que realiza uma política vinda do povo” (Bentes, 2019).
Esta política vinda do povo é que pode ser aprendida nos dias atuais, como uma pedagogia voltada a um novo aprendizado de nossas relações sociais e capitalistas que temos com nosso mundo. Um exemplo prático é o que fazer diante de um capitalismo que se impõe em nossa sociedade, como a única forma de subsistência possível? O filme traz esta noção de que, se tudo quebrar, estamos prontos para nos adaptar, será? Reconhecer que a trágica violência nos leva a lutar por nossa sobrevivência, já é um ponto a pensar.
Fatores que podemos apresentar como uma escola da vida conforme, aborda Freire (1967), não é o medo da liberdade mas sim, a transferência de conhecimento e a criação de possibilidades para sua construção e produção deste conhecimento. Este conhecimento fica muito explicito nas relações sociais dentro da cidade de Bacurau.
Um político corrupto e inescrupuloso que leva a cidade a ter sua própria organização coletiva, um espécie de autogestão conforme, cita Motta (1981) e que esta autogestão seria um lugar fundamental de autonomia coletiva, Ou seja, seria o lugar da iniciativa social, onde o grupo se administra livre e de forma espontânea pelos seus interesses comuns (Motta, 1981). O poder coletivo de decisões da cidade, impõe um líder que não necessariamente, dita as regras mas, que informa aos indivíduos da cidade, uma forma de comportamento e adequação, diferenciadas das que estamos condicionados a sofrer.
As divisões dentro da cidade são claras e cada um sabe seu lugar. As vantagens sustentáveis que esta organização possui é aquilo em que coletivamente ela usa com prontidão e adquire seus conhecimentos (Davenport e Prusak, 1998). A comunidade de Bacurau utiliza seu espaço de forma a garantir sua sustentabilidade, sem prejudicar seu ambiente.
Além disso a autogestão da cidade, implica em algumas tendências irregulares tais como, um poder paralelo que auxilia e ajuda a comunidade nos momentos de crise. As nuances de Bacurau são evidentes demais para serem deixadas de lado e nos remete a uma categoria afirmativa de dados do que temos nos dias atuais. Na gestão de Bacurau, observamos uma tendência de desnaturalizar o capitalismo vigente, quebrar regras e identificar-se como um ser social e não fora de um mapa, que também não temos ideia de quem o desenhou.
Traços coloniais existentes em Bacurau, são muito representativos e percebemos a intervenção dos “colonizadores” em dar significado a sua origem e raça, como se isso, fosse de fato, algo relevante, visto que raça foi uma criação colonial para garantir a retroalimentação de um trabalho escravo direcionado aos negros, índios e judeus, justificando assim, os “outros” como subalternizados e seres de extrema ignorância (Mignolo, 2003).
Por citar capitalismo, não se assuste se ver a única nota em dinheiro do filme, ser dada pelos turistas que chegam a cidade. Como a cidade funciona sem o ritmo tradicional do pague e leve, não fazemos a mínima ideia de como se sustenta mas temos uma noção, de que a cidade possui outras regras, apesar de não se incomodar com o dinheiro vindo de outras práticas não tradicionais.
Quando chegamos ao cinema, sentamos na poltrona e o filme começa pensamos: “nossa que gente primitiva”, isso é uma forma de reproduzir as histórias únicas que conhecemos nossa vida inteira, a história apenas de quem venceu e o perigo de uma história única, de acordo com
Adichie (2019) é que ela, é contada apenas pelos vencedores, que da mesma forma que usurparam, estupraram, escravizaram, roubaram e determinaram características nos “outros”, beneficiando-se de um “status” de ser racional, erudito, culto e com características que devem ser mais representadas dentro da sociedade só o são tão belos e desenvolvidos, devido a carnificina empregada em sua gestão e controle.
Em Bacurau não é diferente, os “outros” são os despreparados, assim pensamos e o filme, leva você a sentir um arrepio pois, seu final é surpreendente. Ainda não conferiu este filme? Então veja, disposto a tomar um susto e de sair sem entender se o filme é de fato numa cidade fictícia. Preste bastante atenção na televisão da cidade e na forma de organização e comunicação repassada. Uma comunicação tão eficiente, que derruba até a política vigente.
O mercado da morte aparece em Bacurau e nos envia para a nossa realidade de mortes pelo Covid-19 em todo o Brasil, e no mundo, podemos assim dizer. Baseado apenas em fatos, Bacurau, nos reserva surpresas e nos permite uma sensação de dever cumprido. Um sensação de acordo com Spivak (1985) de um subalterno poder falar, de um subalterno se organizar, sobreviver sem ajuda política, de existir sendo considerado excluído.
Espero que as reflexões deste texto consigam fazer com que o filme Bacurau, exista não apenas como o “outro” mas como forma de poder e reflexão crítica sobre as condições sociais existentes em nosso mundo, vale ressaltar que a trajetória está mudando, só não percebe quem aceita de bom grado, uma história única e não reconhece que antes, já existia uma cultura existente com suas regras, padrões, cultura e sobrevivência.
Pois bem, se vier, venha em paz.
Referências:
CHIMAMANDA, N, A. O perigo de uma história única. Editora: Companhia das letras. 2019.
DAVENPORT, T, H.; PRUSAK, L. Conhecimento Empresarial; como as organizações gerenciam o seu capital intelectual. Rio de Janeiro: Campus, 1998. 237p
MIGNOLO, W. Histórias Globais/projetos Locais. Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
MOTTA, F, C, P. Burocracia e autogestão (a proposta de Proudhon). São Paulo, Brasiliense, 1981.
PAULO, F. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra LTDA, v. 199, 1967.
SPIVAK, G, C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora: UFMG, 133p., 2010 [1985].
Postado por: Ana Lúcia Schmidt Castelo
Centro/RJ, Brasil.
Mestranda em Administração, graduada em Pedagogia, Arquivologia e concluindo a graduação em Letras. Apaixonada por cinema com preferência por filmes de terror e colaboradora do Blog: “Cinema cem anos de luz, Arte e reflexão” do amigo Marcelo Castro Moraes.