No ano que o Clube de Cinema foi fundado a sétima arte estava vivendo em metamorfose. É bem verdade que desde o seu nascimento os filmes sempre obtinham mudanças constantes, desde os tempos do mudo para o falado e com a intenção de sempre atrair o grande público. É claro que sempre havia realizadores ousados e que tinham a ambição de fazer tudo ao mesmo tempo.
Pode-se dizer que Alfred Hitchcock foi um dos primeiros diretores a serem reconhecidos como cineastas autorais, pois sempre quando era lançado uma de suas obras imediatamente o público reconhecia que era de sua autoria. Uma de suas principais marcas era o movimento pouco incomum de sua câmera, sendo que os limites de um estúdio não o impediam de fazer certas proezas. "Festim Diabólico" (1948) é um desses casos em que o realizador tinha a intenção de dar um passo à frente, mas mal sabendo da tamanha dificuldade.
O filme é baseado em uma peça de teatro da época, mas que por sua vez foi inspirada em fatos assombrosamente verdadeiros. Na trama, conhecemos Brandon (John Dall) e Philip (Farley Granger) que já na primeira cena eles matam David Kentley (Dick Hogan), um colega da escola e cujo crime eles cometeram para provarem para eles mesmos que poderiam obter o crime perfeito sem que possam ser julgados. Para piorar, a dupla de assassinos convida os familiares e amigos da vítima, enquanto o corpo se encontra dentro de um baú em que está sendo servido o banquete. Porém, o professor Rubert Cadell (James Stewart) vai a essa festa e começa a questionar as atitudes da dupla central desse macabro crime.
"Festim Diabólico" foi o primeiro filme do diretor rodado em cores, ou mais precisamente em Technicolor, e do qual exigiu muita paciência do realizador. Para começar, rodar um filme em cores naqueles tempos não era tarefa fácil, pois as suas câmeras não eram muito diferentes das primeiras câmeras IMAX, pois elas eram grandes e para movê-las exigia certo esforço para se dizer o mínimo. Além disso ela ocupava bom espaço do cenário principal do filme, sendo que a trama se passa em um único local, ou seja, em uma sala em que ocorre a festa e o assassinato visto anteriormente.
Transitando entre cinema e o teatro, o filme exigiu paciência também de seus intérpretes, pois havia várias marcações no chão onde os atores deveriam pisar e tomar cuidado para não dar de encontro com a câmera durante o percurso. Nota-se, por exemplo, que há um certo incômodo vindo dos atores e atrizes em cena, como se houvesse uma concentração redobrada e para que não houvesse nenhum erro durante as filmagens. Mas mal sabiam eles qual era a principal ambição do cineasta.
O plano-sequência, ou cenas sem cortes, é algo corriqueiro que se vê muito no cinema atual, pois basta pegarmos "1917" (2019) de Sam Mendes como um belo exemplo. Porém, a simplicidade surpreende ainda mais quando o realizador se empenha a rodar em um único take, como no caso do nosso filme gaúcho "Ainda Orangotangos" (2007), de Gustavo Spolidoro e cujo mesmo rodou seis contos perambulando diversas ruas de Porto Alegre e sendo revisto hoje ainda surpreende. O que Alfred Hitchcock faz em "Festim Diabólico" é algo similar ao que foi visto em "1917", já que o plano-sequência não foi rodado de forma direta.
Em 1948 se podia somente rodar uma cena sem cortes em no máximo dez minutos e é exatamente o que acorre no filme ao longo do percurso. Nota-se que há sim diversos momentos em que a câmera acompanha todos os eventos principais vistos no cenário, mas quando a mesma se aproxima de um determinado ponto, como nas costas de um dos protagonistas, há um corte brusco para que a cena continue com um novo rolo de filme. Se naqueles tempos isso não era perceptível, isso é notado claramente hoje em dia.
Tecnicamente, portanto, o filme era bastante desafiador, mas ao mesmo tempo se casando com abordagem ousada da trama para época. Em tempos conservadores, principalmente com a sombra do Código Hays, falar sobre Homossexualidade era algo impossível no ano de 1948, mas o filme é sobre dois rapazes que moram juntos e que decidem cometer um assassinato achando que poderiam ser seres superiores para cometerem tal ato. Além disso, o crime foi cometido pelo fato de um deles ter interpretado de forma equivocada os pensamentos do seu professor e fazendo desse terceiro ser responsável pelo crime mesmo de forma indireta.
Curiosamente, o filme não foi muito bem aceito na época do seu lançamento nos EUA, sendo que a maioria do público conservador constatou o teor Homossexual nas entrelinhas. Porém, o filme foi muito bem aceito nos países da Europa, sendo que já na época se falava sobre o assunto abertamente, mesmo com algumas limitações impostas pelos governos de cada país. O sucesso do filme fora do território americano somente constatou o fato que Alfred Hitchcock obteria o status de cineasta autoral não graças ao público, ou a crítica norte americana, mas sim em outros países como a França e que muitos cineastas de lá o viam como modelo a ser seguido desde sempre.
No ano que o Clube de Cinema nasceu, "Festim Diabólico" veio com um pé à frente do seu tempo e que somente o mestre do suspense poderia proporcionar isso.
Faça parte:
Facebook: www.facebook.com/ccpa1948
Nenhum comentário:
Postar um comentário