Existe um antes e um depois com relação a "Cidade de Deus" (2002), filme de Kátia Lund e Fernando Meirelles que mudou a cara do cinema brasileiro para sempre. Para chegar esse feito o nosso cinema brasileiro passou diversos obstáculos e todos criados por um governo que não investia na cultura e educação, ou seja, governo Collor. No início dos anos noventa, por exemplo, esse governo extinguiu Embrafilme, fazendo com que a nossa indústria cinematográfica se estagnasse por, ao menos, cinco anos e fazendo com que a nossa arte entrasse em um futuro indefinido. Com as mudanças governamentais e o retorno do investimento, o cinema brasileiro deu um respiro com a superprodução "Carlota Joaquina, Princesa do Brasil" (1995) e iniciamos o que chamamos de "a retomada do cinema brasileiro".
Vieram então "O Quatrilho" (1995), Central do Brasil" (1998), “O Alto da Compadecida” (2000), O Bicho de Sete Cabeças"(2000), Lavoura Arcaica" (2001) e tantos outros que fizeram com que o mundo enxergasse o nosso cinema com novos olhos. Se há um encerramento dessa retomada esse encerramento se encontra em "Cidade de Deus", mas não porque começaria um novo declínio, mas sim porque se concluiu um momento de recuperação e dando a entender que o nosso cinema estava, por enquanto, estabilizado. Com um orçamento de pouco mais de três milhões de reais, o filme alcançou a marca de R$ 30 Milhões pelo mundo, adquirindo diversos prêmios obtendo quatro indicações ao Oscar, incluindo melhor diretor para Fernando Meirelles.
Nada mal para um projeto que começou de uma forma experimental. Baseado no livro de Paulo Lins (1997), que por sua vez é baseado em eventos reais que ocorreram na favela localizada na Zona Oeste do Rio de Janeiro, surgida nos anos sessenta. Porém, tanto o livro como o filme contam eventos que transitam entre o final dos anos sessenta, durante os anos setenta e começo dos anos oitenta. Por conta disso, se tem uma construção gradual da história de uma favela de acordo não somente com relação as ações de seus personagens principais, como também relacionado as idas e vindas de um governo de tempos ditatoriais e que estavam em fase de declínio.
Mais do que uma reconstituição dos fatos, Meirelles queria uma obra com um teor quase documental, onde a gente não via atores conhecidos, mas sim gente como a gente e fazendo com que imediatamente nos identificássemos com eles. Para isso, o realizador confiou na sua parceira do projeto Kátia Lund em formar uma escola de atores, para recrutar jovens de favelas do rio, para que os mesmos estudassem atuação e criassem para si os seus respectivos personagens que iriam atuar no projeto. No documentário encontrado na primeira versão do DVD, por exemplo, se tem passo a passo de como foi esse laboratório e cujo resultado nós testemunhamos quando o longa foi lançado.
Do elenco original, se destaca o fato de interpretes como Seu Jorge e Alice Braga que, a partir do sucesso do filme, criaram carreiras tanto nacionais como internacionais, sendo que a sobrinha de Sonia Braga é vista até hoje em super produções norte americanas como no caso, por exemplo, "Esquadrão Suicida" (2019). Porém, embora o bom moço Buscapé, interpretado pelo jovem Alexandre Rodrigues, seja o protagonista e narrador da trama, todos eventos se voltam perante Zé Pequeno, interpretado com intensidade pelo Leandro Firmino da Hora e que na época nunca havia atuado na vida.
O seu Zé Pequeno é uma figura complexa, trágica, da qual sintetiza a formação desses jovens das favelas sem nenhuma boa perspectiva com relação ao seu futuro e tendo que sobreviver com o que tem, nem que para isso se renda ao desejo de matar. Tecnicamente o filme dá também um verdadeiro show, sendo que cada época possui a sua fotografia distinta uma da outra. Enquanto a trama dos anos sessenta sintetiza tempos mais inocentes e dourados, os anos setenta adentra com diversas cores, mas que logo vão sendo impregnadas com um teor mais sombrio e culminando nas cores pálidas do início dos anos oitenta.
Porém, na parte técnica, é onde mora o verdadeiro brilho autoral de Meirelles. Já na abertura, por exemplo, vemos Buscapé sendo encurralado entre a polícia e a gangue de Zé Pequeno e imediatamente se faz um giro de 360 graus em volta do personagem, fazendo com que o mesmo retorne ao passado é aí que a trama se tem início. Algo parecido com efeito bullet time visto alguns anos antes em "Matrix" (1999), mas tudo feito a mão e cujo resultado acaba se tornando ainda mais verossímil. Mas o grande feito de Meirelles se encontra no uso do efeito tridimensional, ou seja: várias telas se abrindo e mostrando várias coisas acontecendo ao mesmo tempo para o espectador, sendo algo que somente eu viria a seguir em 2003 no filme "Hulk" de Ang lee.
Outra grande sacada do realizador foi sempre retornar em um ponto especifico da história e fazermos a gente revisita-lo por outra perspectiva. No assalto do motel no início do filme, por exemplo, vemos em um primeiro momento o assalto planejado pelo trio ternura, para logo depois testemunharmos uma verdadeira chacina. Porém, somente depois constatamos que quem provocou isso foi Dadinho, ou seja, o futuro Zé Pequeno.
Mas o que dizer sobre a origem de uma boca de fumo contada passo a passo em um único cenário, mas que aos poucos vai sendo modificado perante os nossos olhos. Nesta cena especifica acompanhamos como o local passou de mãos em mãos, até chegar às mãos de Zé Pequeno, sendo que o mesmo se apresenta de três formas diferentes elevando a cena em um patamar que poucas superproduções hollywoodianas alcançam até hoje. Porém, muito se deve esse feito ao montador de cenas Daniel Rezende e que, posteriormente, se tornaria um grande diretor a partir do filme "Bingo - O Rei das Manhãs" (2017).
Portanto, vinte anos depois, é preciso se comemorar o aniversário de "Cidade De Deus", principalmente em um momento em que o nosso cinema brasileiro se encontra novamente ameaçado. Além da sempre ameaça da extinção da Ancine, há também a possibilidade da aprovação da Medida Provisória 1135 (que adia para 2023 repasses da União a entes federativos para apoio aos setores culturais em razão da pandemia de Covid-19, retirando inclusive a obrigatoriedade do repasse de valores) e a proposição, por meio do plano orçamentário para 2023, de extinguir a Condecine (contribuição paga pelas empresas ligadas ao audiovisual e às telecomunicações que financia a atividade cinematográfica no Brasil) são decisões preocupantes que, se implementadas, desestabilizarão um segmento simbolicamente essencial e economicamente pujante da cultura brasileira.
Porém, isso somente irá acontecer se caso não mudarmos esse governo nas próximas eleições de uma vez, ou seja, tudo depende de nós. A nossa cultura, infelizmente, não é muito valorizada por uma parcela do povo brasileiro e, portanto, é uma luta árdua para manter o que é nosso, para não ser extinguido e ser lembrado ao longo do tempo. Os erros do passado não podem ser repetidos em nosso futuro e cabe nós darmos esse grande novo passo.
"Cidade de Deus" comemora os seus vinte anos de existência no pior momento do cinema brasileiro desde a era Collor e cabe nós mudarmos esse cenário.
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