Sinopse: O detetive aposentado John Scottie sofre de um terrível medo de alturas. Certo dia, um amigo pedem a John que siga sua esposa. Ele aceita a tarefa e começa a segui-la por toda parte.
Alfred Hitchcock era um estranho no ninho dentro da fábrica de sonhos de Hollywood, da qual os seus produtores criavam filmes para gerar lucro, independente do filme ser ou não relembrado nos próximos anos. Hitchcock ia contra maré nesta questão, ao comandar os seus próprios filmes e sempre injetar neles a sua visão autoral, que vai desde a personagens duplos, planos-sequências mirabolantes e um suspense que beira ao psicológico que somente Freud explica. Dando sempre carta branca para si, ele resolveu se arriscar em um filme complexo e a frente do seu tempo que foi "Um Corpo que Cai" (1958).
A trama se passa em São Francisco, onde um detetive aposentado John 'Scottie' Ferguson (James Stewart) sofre de um terrível medo de alturas. Certo dia, encontra com um antigo conhecido, dos tempos de faculdade, que pede que ele siga sua esposa, Madeleine Elster (Kim Novak). John aceita a tarefa e fica encarregado da mulher, seguindo-a por toda a cidade. Ela demonstra uma estranha atração por lugares altos, levando o detetive a enfrentar seus piores medos. Ele começa a acreditar que a mulher é louca, com possíveis tendências suicidas, quando algo estranho acontece nesta missão.
Com um visual mórbido na abertura dos créditos, o cineasta já deixa claro para o seu público que eles não irão assistir a um filme fácil, principalmente ao vermos o protagonista pendurado em um prédio e vendo seu parceiro cair diante dos seus olhos. É neste ponto que Hitchcock dá um salto revolucionário em termos técnicos, ao criar a sequência de zooms e afastamento da câmera, que dá ao público a sensação de vertigem sentida por John 'Scottie' Ferguson. Por apenas alguns segundos utilizando esta sequência foi pago cerca de US$ 19 mil e nestes momentos serviriam de inspiração para outros cineastas posteriormente, como no caso de Steven Spielberg com o seu clássico "Tubarão" (1975).
Embora conhecido por preferir dirigir cenas em estúdio, Hitchcock opta aqui em sair com a sua câmera e filmar o personagem John de James Stewart vigiando a personagem Madeleine de Kim Novak nas ruas de San Francisco. As cenas, aliás, são as melhores que sintetizam a beleza da cidade dentro da história do cinema, sendo que o ápice delas ocorre próximo a ponde de Golden Gate. Mas se o seu visual impressiona a trama não fica atrás de forma alguma.
Embora conhecido como o mestre do suspense, o diretor quase nunca criou um filme cuja a temática era o sobrenatural em si, mas a própria sendo usada como uma cortina de fumaça para ocultar o verdadeiro segredo da trama. Ele já havia usado isso de forma perfeita no seu primeiro filme em solo americano que foi "Rebecca - A Mulher Inesquecível" (1940), sendo que naquela obra Rebecca já se encontra morta, mas o passado da própria ainda assombra os protagonistas. Aqui acontece algo similar, onde vemos a personagem Madeleine ser, aparentemente, possuída por um espirito vindo do passado, mas a verdade se encontra muito mais embaixo.
Além do caso sobrenatural servir como distração existe a questão do duplo, onde Hitchcock gosta de construir personagens que constroem para si outra pessoa e assim enganar a próxima. Neste caso, o protagonista cai em uma profunda depressão após não ter conseguido salvar Madeleine do, aparentemente, suicídio e ficando obcecado pelo seu retorno mesmo ela já tendo falecido. É aí que ele conhece Judy, uma mulher extremamente semelhante com a Madeleine e deseja ficar com ela para sentir de volta o seu amor perdido.
É aí que chegamos ao ponto mais surpreendente do filme, já que John deseja ressuscitar a sua amada morta através de Judy, fazendo com que ela se vista e fique com os cabelos loiros. É um caso de amor necrófilo, onde o ápice acontece no momento em que Judy se transforma por completo, fazendo com que John abrace uma lembrança morta e fazendo com que o mesmo se dê conta disso, mas ignorando o fato. A cena, aliás, serviu de inspiração anos mais tarde para Brian de Palma criar o seu "Duble de Corpo" (1984), sendo que o mesmo usaria também "Um Corpo que Cai" de inspiração anos antes para a construção do filme "Vestida para Matar" (1980).
Embora o espectador saiba da verdade antecipadamente, é somente no ato final que John descobre que Judy e Madeleine eram na verdade a mesma pessoa e se viu envolvido em uma grande armação ao longo da história. Em seu final, John venceu os seus medos enfrentando a verdade, mas pagando um alto preço nos segundos finais da obra e fazendo disso um final justo, porém, não menos mórbido. Não é à toa que na época o filme quase não se pagou, pois o público não estava preparado para uma obra tão complexa, cheia de camadas e que fala sobre paixões e medos na mesma medida.
Em duas ocasiões, o crítico de cinema e escritor Luiz Carlos Merten apontou o filme como a obra prima do diretor nos seus livros "Cinema - Um Zapping de Limiere a Tarantino" e "Cinema - Entre a Realidade e o Artifício". Em 2011, eu havia escrito um texto intitulado "Rei Kane. Não tão rei assim", onde eu fiz uma lista de possíveis filmes que poderiam pegar o título de melhor filme de todos os tempos no lugar de "Cidadão Kane" (1941). Um ano depois, a revista Sight and Sound lançou a lista dos cem melhores filmes de todos os tempos e "Um Corpo que Cai", enfim, aparece em primeiro no pódio.
Curiosamente, "Um Corpo Que Cai" esteve inacessível ao público em geral durante décadas. Isto porque o diretor comprou de volta os direitos de cinco de seus filmes e os deixou de legado para sua filha. Estes filmes receberam o apelido de "os cinco filmes perdidos de Hitchcock" e voltaram ao alcance do público em 1984, quando foram relançados nos cinemas, com uma distância de quase 30 anos desde seu primeiro lançamento. Os demais filmes do pacote eram “Festim Diabólico” (1948), “Janela Indiscreta” (1954), “O Homem Que Sabia Demais” (1956) e “O Terceiro Tiro” (1955).
Mais de sessenta já se passaram, mas "Um Corpo que Cai" ainda é um exercício psicológico sobre paixões e medos reprimidos e fazendo dele uma das maiores obras primas de todos os tempos.
NOTA: O filme será exibido na retomada do Clube de Cinema de Porto Alegre. Será no próximo sábado (20) na Sala Paulo Amorim, Casa de Cultura Mario Quintana às 10:15 da manhã
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