Este é o quarto filme protagonizado pelo personagem Antoine Doinel, o alter-ego do cineasta François Truffaut. "Domicílio Conjugal" revela o olhar terno, engraçado e inteligente de Truffaut sobre o casamento e a paternidade. Sendo um cineasta que sempre amou o cinema como um todo, declarou ter-se inspirado nas "comédias americanas sobre os casais, de Leo McCarey e de George Cukor, sem esquecer a influência de Lubitsch, que é decisiva quando se trata de concatenar acontecimentos familiares para fazer rir o público, mas de modo a que tudo fosse tratado, evidentemente, com espírito francês".
Com 100 minutos de duração, direção de arte e figurino bem trabalhados, "Domicílio Conjugal" tem como um dos pontos mais interessantes o painel histórico em que a narrativa está mergulhada. Seguindo o lema do pensador Frederic Jameson, “historicizar sempre”, percebemos que muito do contexto político e cultural da França na época está inserido no filme. Neste período, a França estava imbuída do espírito de mudanças: marcada pelo maio de 1968, pelas manifestações do movimento feminista e por uma crise econômica, a nação passou a ser governada pelo então ministro das finanças Giscard, representante político simpático do movimento feminista, que tratou de, entre tantas reformas, impulsionar a economia, bem como implementar medidas de estatais de modernização.
Ao apresentar os conflitos amorosos sem o modelo prosaico do cinema hollywoodiano, mas como uma caricatura deste, Truffaut toca nas cordas sensíveis da liberdade sexual, um tema ainda tabu nesta época, mas já debatido sem tantas delongas, haja vista que no governo de Giscard, atitudes como a mudança da maioridade penal de 21 para 18 anos de idade, a liberação do aborto e a campanha para uso de contraceptivos marcaram a época.
Por isso a importância do que se seguirá após o aparecimento de Doinel em "Domicílio Conjugal". Ele está casado com Darbon, cuja conquista presenciaremos em "Beijos Proibidos". O amor - tema ao qual o nome do diretor será vinculado - encontra aqui um momento decisivo no casamento e na rotina. A paternidade, registrada em bela cena, e a estabilidade econômica, conseguida através de um emprego estranho em que cuida de maquetas de navios, darão cores ambivalentes ao progresso de um dos nomes mais importantes da Nouvelle Vague.
Curiosidade: Profundamente apaixonado pelo cinema, Truffaut não consegue deixar de falar de filmes em seus filmes. Antoine passa em frente a um grande cinema parisiense em que um cartaz descomunal anuncia o filme Cheyenne, de John Ford – um dos grandes ídolos do realizador. Num texto de 1974, Truffaut diria: “John Ford era um desses artistas que jamais pronunciam a palavra arte e um desses poetas que jamais mencionam a palavra poesia”. E finalizaria assim: “E como John Ford acreditava em Deus, Deus abençoe John Ford”.