No Graphic Novel “Daytripper” (2010), escrito e desenhado pelos irmãos brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá, o protagonista pergunta ao seu melhor amigo se ele não vai tirar uma foto de uma bela paisagem vista durante um passeio em Salvador. Em sua resposta, o amigo diz que aquilo era grande demais para uma simples foto e que a vida é boa demais para ser guardada em um único retrato. Ou seja, os momentos em que testemunhamos em vida podem ser grandes demais para serem guardados em uma mera fotografia, mas preserva-las em nossos pensamentos as tornam muito mais ricas em conteúdo e significado.
Muitas fotografias geram inúmeras histórias, pois nelas guardam o mistério sobre o que acontecia muito além daquela imagem presa ao seu passado. Já as lembranças podem ir e vir em nossas mentes, ao ponto que, talvez, certos detalhes ganham maior relevâncias do que quando foram vistas pela primeira vez. É por essa linha de pensamento que chegamos a Alfonso Cuarón com relação a sua obra prima “Roma” (2018), da qual ele filmou baseado em suas lembranças de infância e as moldando para as telas do cinema.
Nessa superprodução de época, Cuarón faz de tudo um pouco, desde diretor, produtor, roteirista e realizador de uma belíssima fotografia. Falando nela, é nessa área que o cineasta esbanja um talento poucas vezes visto dentro do cinema contemporâneo, pois a sua câmera desliza sem pressa pelos cenários em preto e branco que representam a sua casa da época de sua infância e revelando detalhes que não podem ser encontrados numa primeira visita. Embora devagar, a câmera nos obriga para termos total atenção, pois ela chega ao ponto de fazer um giro de 360º graus na sala principal da casa onde se passa a trama principal da obra.
No clássico “Blade Runner” (1982), por exemplo, Rick Deckard (Harrison Ford) analisava uma foto através de seu computador e onde se revelava um detalhe do qual não poderia ser visto a olho nu. Esse momento sintetiza o filme como um todo, já que Ridley Scott criou uma obra com tantos detalhes que muitos até hoje descobrem pequenos símbolos escondidos em meio aos cenários. Alfonso Cuarón segue numa proposta semelhante em que, ao invés de nos apresentar simples fotos, ele recria inúmeras imagens cheias de detalhes e que remetem as suas boas e más lembranças do seu passado longínquo.
Mais do que fazer uma reconstituição do que ele viu e ouviu, Alfonso Cuarón coloca os fatos históricos entre os anos de 1970 a 1971 acontecidos no México como pano de fundo, mas que em alguns momentos eles se sobressaem e ficam à frente da trama principal. Em “Gravidade” (2013), por exemplo, Cuarón havia colocado o cinéfilo a frente da protagonista (Sandra Bullock) sobre os acontecimentos que viriam, já que existe algo acontecendo ao fundo no espaço e é então que ela percebe que há milhares de destroços que estão chegando ao seu encalço. No caso de “Roma”, a reconstituição é pontual sobre a chacina ocorrida em 1971, conduzida por um grupo paramilitar, assassinos de estudantes que protestaram contra o governo, deixando a personagem principal Cleo (Yalitza Aparicio) em estado de impotência assim como nós, mesmo com alguns detalhes já vistos anteriormente e que serviram de prelúdio para o que viria ocorrer.
Cleo é, portanto, a nossa guia pelo passado de Cuarón, sendo uma jovem inocente, mas trabalhadora, mesmo com os percalços que surgem em sua vida e da família da qual ela trabalha. Cleo seria uma espécie de Forrest Gump na visão do cineasta, onde a sua humildade se torna a sua principal arma contra um sistema moldado por regras capitalistas e que tentam extinguir uma ideia mais socialista na vida daquelas pessoas. O sistema, aliás, não enxerga quem sustenta essa realidade, mas com a sua câmera, Cuarón escancara os verdadeiros pilares da humanidade em uma cena simbólica, onde Cleo brinca com uma das crianças no terraço da casa.
O papel da mulher na trama é determinante para que os demais personagens da história consigam seguir em frente. A patroa de Cleo, Sofia (Marina Tavira), por exemplo, transita entre o caminho sem rumo para depois se reerguer em meio aos escombros de um casamento em frangalhos. Duas mulheres diferentes, mas pertencentes a mesma realidade e unindo forças para seguirem em frente perante as ondas das mudanças que as atingem.
Mais do que uma obra prima, "Roma" é o cinema em movimento, onde as cenas simbolizam lembranças e das quais nenhuma fotografia conseguirá superá-las.
Onde Assistir: Pela Netflix e numa edição especial em DVD lançada recente pela Versátil.