O tempo é o verdadeiro juiz com relação a arte, pois se ela não é reconhecida em sua época talvez ela seja na medida em que o tempo passa. No caso do cinema isso não é diferente, sendo que os anos passam, filmes se tornam sucessos de bilheteria enquanto outros fracassam, ou são mal interpretados pela crítica especializada. Um dos meus filmes preferidos "Blade Runner" (1982) fracassou em seu ano de lançamento, mas rapidamente se tornou cultuado graças as sessões da Cinematecas, VHS e tv a cabo.
Na luta pelo lucro muitos filmes acabam ficando pelo caminho, sendo que o verão do cinema norte americano do ano de 1982 é um belo exemplo disso. Entre os diversos lançamentos da época o maior sucesso de bilheteria acabou sendo "ET" de Steven Spielberg, sendo que o filme ficou por meses em cartaz, fazendo com que o público fosse ir aos cinemas diversas vezes e fazendo com que os outros lançamentos ficassem em segundo plano. Dentre os fracassos, além do já citado "Blade Runner" temos a obra prima do diretor John Carpenter, "O Enigma do Outro Mundo", sendo apedrejado na época do seu lançamento, mas se tornando um dos mais interessantes exemplos de filmes que ganharam o reconhecimento ao longo dos anos.
O filme é uma refilmagem do clássico "O Monstro do Ártico" (1951) de Christian Nyby, porém, o diretor John Carpenter decidiu em seguir a fonte, ou mais precisamente se inspirar mais no conto escrito por John W. Campbell. Na obra literária, a criatura mata e copia as suas vítimas e fazendo se criar uma verdadeira paranoia sobre quem é o ser no decorrer da trama. Pode-se dizer que a obra serviu de inspiração até mesmo para outros clássicos dos tempos de paranoia da Guerra Fria, como no caso de "Vampiros de Almas"(1956).
Para John Carpenter, a premissa da trama também poderia ser facilmente inserida nos tempos de paranoia que acontecia no início dos anos oitenta. Era os tempos da AIDS, onde as pessoas ainda não sabiam ao certo como pegava a doença e gerando assim uma verdadeira paranoia na época e causando até mesmo um grande conflito de desconfiança entre as pessoas. Visto hoje, o filme de Carpenter pode ser interpretado como uma parábola desse período de incerteza sobre um inimigo invisível para boa parte da sociedade.
Como filme em si o longa é uma verdadeira aula de filmes de horror gore e com diversas pinceladas de suspense que envelheceram muito bem diga-se de passagem. Não há como negar que o longa causa uma sensação claustrofóbica, principalmente pelo fato da trama se passar em uma base isolada na Antártida e cujo inferno acontece quando um cachorro é perseguido por um helicóptero da base Norueguesa e fazendo com que a equipe comandada por Kurt Russell não compreenda a situação. A resposta acontece quando o cão é preso no canil, onde ele começa a sugar os demais no local e se transformando em um ser tenebroso.
Vale salientar que falamos de um filme lançado em uma época em que não havia em abundância o uso dos efeitos digitais. Para que a criatura impressionasse nas telas foi chamado o maquiador e de recursos visuais Rob Bottin, que já havia trabalhado com Carpenter em "A Bruma Assassina" (1980). O resultado foi um grande uso de animatrônicos, maquiagem pesada, o uso de gelatina falsa e sangue em abundância. Por conta disso sentimos um peso quando a criatura surge em cena, seja na forma de um cão deformado, ou de uma aranha, ou até mesmo surgindo como uma enorme boca cheia de dentes na barriga de um dos protagonistas.
Tudo culmina em cenas de horror inesquecíveis, que fazem o espectador não as esquecer tão cedo. Pode-se dizer que o filme era algo até mesmo a frente do seu tempo, pois até então não havia tamanha cenas de mutilação, metamorfoses em cena e tudo moldado a mão e com bastante criatividade na medida certa. Ao mesmo tempo, Carpenter capricha em cenas com momentos tensos, principalmente quando o personagem de Kurt Russell faz testes de sangue em seus amigos para saber qual deles é o invasor alienígena. A cena é por si só um dos momentos em que faz todo mundo pular da cadeira, pois ninguém esperava a reação da criatura daquela maneira e gerando um verdadeiro pandemônio na história.
Como eu disse acima, o filme fala sobre paranoia, desconfiança e sobre quem acreditar em tempos de incerteza. A criatura invasora se torna, portanto, um mero artificio para fazer os personagens aflorarem os seus piores medos e paranoias e fazendo com que o filme se torne ainda mais atual do que nunca nos dias de hoje. Só a cena final fortalece ainda mais essa visão pessimista e da qual John Carpenter a manteve mesmo no contragosto dos engravatados da Universal da época.
O filme estreou no meio da avalanche de "ET", que era um filme mais positivo para uma plateia que fugia de filmes mais pessimistas na época. Ao mesmo tempo o longa foi injustamente massacrado pela crítica daquele ano, alegando ser uma obra cruel, desumana e violentamente explicita. Atualmente, quase não há nenhum crítico que fale de forma negativa sobre esse filme, sendo até mesmo fazendo parte da lista dos melhores filmes de ficção de todos os tempos.
Recentemente o selo Obras Primas do Cinema lançou o clássico em um blu-ray caprichado, com luva metálica, dois DVDs com vários extras, além de posters, um livrinho explicativo e diversas fotos. Um item obrigatório para aqueles que ainda apreciam a mídia física e que desejam sentir nas suas mãos o seu filme preferido e tê-lo em sua prateleira. "O Enigma do Outro Mundo" é um filme a frente do seu tempo, sendo hoje cultuado e colecionando diversos fãs ao redor do mundo.
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