sexta-feira, 1 de março de 2024

Cine Especial: Conhecendo 'A Filha de Ryan'

David Lean foi o melhor representante dos filmes épicos que o cinema poderia proporcionar na era de ouro do cinema. Ele é responsável por obras primas como "A Ponte do Rio Kwai" (1957), "Lawrence da Arábia" (1962) e "Doutor Jivago" (1965). O segundo, aliás, está entre os melhores filmes de todos os tempos, sendo uma superprodução que não se faz mais hoje em dia, já que eram tempos em que tudo era feito na mão e cenários feitos por computador era algo que nem se imaginava. Porém, quando o cinema começou a mudar na virada dos anos sessenta para os setenta o realizador sentiu a realidade bater a sua porta.

Eram tempos em que épicos já não atraiam mais tanto o público, sendo que foi um período em que a "Nova Hollywood" estava dominando e o público exigia maior realismo. Mesmo assim David Lean era um realizador que ganhava carta branca devido ao seu passado grandioso e, portanto, faria qualquer filme que estivesse em seu alcance mesmo correndo sério risco de prejuízo. "A Filha de Ryan" (1970) é um filme fora do seu tempo, sendo uma obra representativa de tempos mais dourados, mas que não soube se encaixar direito com o período em que foi lançado.

A trama se passa em uma cidade irlandesa no ano de 1916, onde uma jovem chamada Rose (Sarah Miles) se apaixona por um professor mais velho (Robert mitchum) e ambos se casam. Porém, a relação não era de acordo como ela imaginava ela acaba se apaixonando por um oficial britânico (Christopher Jones) e ambos iniciam um relacionamento proibido. Porém, um rapaz com deficiência mental (John Mills) expõe para todos da cidade que uma mulher casada está tendo um caso com um oficial britânico.

Falando assim parece que o filme nem de longe nos soa como uma grande produção, mas David Lean tirava leite de pedra em tramas das mais simples, mas moldando-as para nos passar algo estupendo na tela grande. As belas paisagens do vilarejo da Irlanda visto na tela já são um show se fossem vistas ao vivo, mas da maneira como ele as filma se torna ainda mais grandioso. Recentemente eu havia visto "Os Banshees de Inisherin" (2023) de Martin McDonagh, que nos faz querer visitar o país só por aquelas imagens, mas aqui rodado por David Lean fez o desejo aumentar ainda mais.

Portanto, é até perdoável que uma história simples sobre adultério é o que mova essa superprodução. Muito embora esses outros assuntos são algo rotineiros dentro da filmografia do cineasta, mas orquestrando elas de uma forma que se diferenciava dos outros filmes da época. Vale destacar a primorosa fotografia, cujo verde dos bosques são algo que nos faz saltar os olhos e não é à toa que acabou levando um merecido Oscar pela categoria.

Com relação ao elenco se destaca Sarah Miles ao construir para a sua Rose uma jovem inocente perante a sua realidade, mas não escondendo o seu desejo de voar muito mais além daquele vilarejo e indo contra os desejos do bom padre da cidade e do qual é interpretado com intensidade por Trevor Howard. Já Robert Mitchum nos brinda com mais um papel curioso de sua carreira, já que o seu personagem possui uma noção clara com relação aos fatos, seja com relação ao vilarejo conservador que convive, como também a possibilidade de estar sendo traído pela sua esposa. A cena em que ele segue atrás das pegadas na praia dos dois amantes é desde já um dos grandes momentos do filme.

Porém, é preciso destacar o veterano John Mills que ao interpretar um deficiente mental do lugar rouba a cena toda vez que surge em cena, principalmente pelo fato de não sabermos em um certo momento no que ele realmente pensa, muito embora saibamos que ele nutre uma paixão pela protagonista. Mas talvez a maior falha do filme em termos de interpretação se encontre justamente no intérprete do amante, já que Christopher Jones nos passa uma atuação petrificada e que não combina com um personagem trágico e que carrega os horrores da guerra como um todo.

Talvez por esse deslise ou outro o filme não foi muito bem recebido pela crítica na época, mesmo tendo feito um sucesso considerável através do público. O que pesa, talvez, é justamente o que eu disse acima, ser uma superprodução fora de sua época em um momento em que o cinema de Hollywood e no mundo estavam passando por uma certa metamorfose, onde os gostos e os anseios do público estavam mudando e cujo glamour dos anos dourados do cinema norte americano já encontravam no passado. David Lean, por sua vez, sofreu com isso, principalmente pelo fato que ele voltaria somente a lançar um filme vários anos depois, intitulado "Passagem para a Índia" (1984), mas o estrago já estava feito e esse viria ser a sua última obra rodada.

Conhecendo agora "A Filha de Ryan" percebo a obsessão que o realizador tinha pela grandiosidade do cinema e do qual ele gostaria de levar ao longo da vida, mesmo quando lhe custasse bastante caro para dizer o mínimo. Portanto, não deixa de ser curioso a cena final da história, onde vemos um determinado personagem apreensivo com o futuro dos personagens principais, mas ao mesmo tempo sendo uma cena simbólica sobre o futuro desconhecido que o cineasta enfrentaria, assim como também as mudanças que o próprio cinema passaria. Hoje sabemos todo esse resultado e talvez o realizador não estivesse tão errado com relação aos seus desejos.

"A Filha de Ryan" foi a última grande superprodução de David Lean que representa tempos mais dourados do cinema, mas dos quais ficariam em um passado mais dourado e dando lugar ao cinema mais realístico. 

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