sexta-feira, 24 de junho de 2022

Cine Especial: 'Blade Runner - 40 Anos Depois'


Eu escrevo sobre cinema neste blog desde 2008 e ao longo desse percurso já escrevi mais de uma vez sobre determinado clássico. Quem me acompanha sabe que o meu filme preferido é "Blade Runner" (1982), apontado por muitos como uma das melhores ficções cientificas de todos os tempos e o que melhor sintetiza o significado da palavra cult. Sendo assim, o que mais eu posso dizer sobre essa obra de Ridley Scott baseada num conto literário de Philip K. Dick?
Para começo de conversa, eu ficava sempre me perguntando como seria a nossa realidade quando chegássemos a data em que a trama se passa, sendo basicamente "novembro de 2019". Quando se olha para trás se percebe que o filme não foi somente a frente do seu tempo, como também profético com relação ao destino do mundo e da própria humanidade que se encontra cada vez mais perdida e se desprendendo do que nos faz seres humanos. Em 1982, enquanto Steven Spielberg nos dava certa esperança com a presença de "ET", Ridley Scott optou em radicalizar, aos nos mostrar o que já estava acontecendo naqueles anos onde se prometia uma cruzada pela utopia, mas cuja a mesma jamais havia acontecido. 

"Blade Runner" Já Estava Acontecendo 

Quando o filme estreou muito críticos de cinema da época não compreenderam a proposta principal da obra, sendo que a mesma falava sobre o nosso próprio futuro, mas também ressoando sobre os tempos em que já estávamos vivendo. Nos anos setenta, por exemplo, os EUA viviam uma espécie de crise de identidade, após o fracasso do Vietnã, Caso Watergate e uma crise financeira da qual as grandes metrópoles como Nova York não a escondiam e sendo representadas por uma onda de crimes, drogas e prostituição em larga escala. Antes de "Blade Runner", o filme que mais capitou esses tempos nebulosos sem sombra de dúvida foi "Taxi Drive" (1976) de Martin Scorsese e cujo o seu estilo noir daqueles tempos serviu, acredito eu, de inspiração para Ridley Scott projetar o seu futuro projeto.

Muito embora a Los Angeles de 2019 vista no filme lembre também bastante a do clássico expressionista "Metrópolis" (1927) de Fritz Lang, sendo que ambas as obras retratam um futuro onde a sociedade cada vez se encontra mais dividida e cuja a união entre as classes se torna um mero sonho nunca alcançado. "Blade Runner" talvez tenha sido um dos poucos filmes da época ao nos dizer que o sonho pela utopia não passava de uma mera fantasia e cuja as mazelas daqueles tempos ainda se alastrariam em nosso futuro. Se naquele tempo retratar isso poderia soar como impensável, hoje em dia isso pode até mesmo ser facilmente digerido e analisado, pois basta pegarmos como exemplo o filme "Coringa" (2019), cujo o mesmo fala do nascimento de um determinado individuo problemático, que foi moldado por uma sociedade dividida entre pobres e ricos em meio a uma Nova York, ou Gotham City, infestada por lixo, doenças, ratos e a pobreza que se encontra em todos os cantos.

COVID-19 - Novembro de 2019 

Na Los Angeles de 2019 de "Blade Runner" vemos uma sociedade étnica aglomerada no meio de ruas sujas, esfumaçadas e com uma chuva ácida incessante. Por mais belo que seja os grandes edifícios com os seus neons e anúncios em movimento, o cenário não esconde o fato daquelas pessoas serem excluídas, presas ao inferno que se encontra a terra enquanto os de boa fortuna fogem para outros planetas. Dá a entender que há muitas doenças em volta, fazendo com que muitos não obtenham o seu salvo conduto e tendo que se contentarem com o pouco que os poderosos haviam deixado.

Curiosamente, o nosso novembro de 2019 veio para mudar o mundo que nós conhecemos, já que a descoberta do Covid-2019 foi anunciada em dezembro daquele ano na China, mas dando indícios que os contágios já estavam acontecendo em novembro. O resultado não foi somente milhares de mortes, como também revelando uma desumanidade por parte de vários líderes mundiais que não aceleraram a busca pela vacina e resultando no sofrimento dos mais pobres. O filme, portanto, foi meio que profético na questão, não somente da resposta da natureza contra o homem, como também o mesmo se tornando menos humano perante aos seus pares.  

Tecnologias e Nostalgias 

Embora verossímil, "Blade Runner" possui uma tecnologia vista na tela que acabou não surgindo em nossas vidas. Porém, é notório que Ridley Scott havia já capitado o fato que os avanços tecnológicos do mundo real não avançariam tanto como muitos profetizaram e criando assim para o filme um visual tecnológico que nos dizia sobre um possível futuro, mas com traços daquele presente. Neste último caso, é interessante observar que nestes últimos dez anos houve um crescimento significativo de uma parcela da sociedade indo em busca de filmes, séries, desenhos, músicas e até a própria moda dos anos oitenta. Em meio a essa nostalgia, se cria também uma época atual sem identidade própria e fazendo do visual de "Blade Runner"  não ser muito distante da nossa.

A Redescoberta do Expressionismo 

"Blade Runner" possui uma aura expressionista, cujo o seu visual remete diretamente aos tempos de um cinema alemão moldado por luz e sombras. Se por um lado a Los Angeles daqui possui traços semelhantes ao que são vistos no já citado "Metrópolis", por outro lado, o visual dos replicantes parecem até que foram extraídos de alguns personagens vistos no filme "O Gabinete do Dr. Caligari" (1920), sendo que esse clássico é uma espécie de metáfora sobre alienação que o povo alemão sofreria nos anos seguintes com a chegada de Hitler ao poder. No filme de Ridley Scott, o expressionismo é ainda mais sentido no cenário do apartamento do personagem Sebastian (William Sanderson) e cuja replicante Pris (Daryl Hannah) se remodela de acordo com aquele ambiente e fazendo da cena um dos mais belos visuais do filme.

Vale salientar que o expressionismo refletia o estado de espirito alemão do início do século vinte, do qual o mesmo se encontrava ainda fragilizado após o término da Primeira Guerra Mundial e profetizando os horrores do fascismo no poder que iria logo acontecer. O mesmo expressionismo, portanto, é usado em "Blade Runner" para falar sobre o que havia dado de errado no passado e sobre o que poderia acontecer em nosso futuro. Mas se o clássico foi moldado pela arte vinda do passado, o mesmo acabou servindo posteriormente de inspiração até mesmo para filmes recentes como no caso, por exemplo, de "The Batman" e cuja a obra de Matt Reeves possui tanto traços da obra de Ridley Scott como também do melhor período do cinema alemão.  

É Preciso Renegar a Deus?  

É curioso observar que em tempos atuais de desumanidade cada vez mais acentuados, os mesmos que se dizem a serviço de Deus praticam atrocidades longe dos holofotes e fazendo com que a religião se torne uma mera cortina de distração. Curiosamente, os mais céticos são os que fogem da idolatração de qualquer mito e tornando-se mais humanos na busca de uma realidade mais sociável. No filme, os humanos tratam os sentimentos como meros detalhes enquanto os replicantes põem em prática essas sensações com o intuito de buscar um meio de obterem mais vida.

A cruzada do replicante Roy (Rutger Hauer) em busca do seu criador Dr. Eldon Tyrell (Joe Turkel) se torna decepcionante quando o último nega ao primeiro qualquer possibilidade de ajuda-lo com relação a sua inevitável morte. Assim, o filho mata o seu criador, para desfrutar do que resta de sua vida e fazendo dele, enfim, mais humano do que qualquer ser humano que se encontra naquela realidade. Livre das amarras daquele que o abandonaste, Roy busca por em prática uma lição contra o caçador de replicantes Deckard (Harrison Ford), cujo o mesmo se encontra dividido em obedecer a ordens friamente para executar os replicantes ou despertar definitivamente o seu lado humano através do amor que sente pela replicante Raquel (Sean Young).

No ápice do confronto entre os dois, Roy poupa a vida de Deckard e antes de morrer ele fala de situações que ele presenciou, fazendo despertar nele sensações que o fizeram se sentir realmente vivo, mas que se perderam ao longo do tempo. Podemos interpretar esse grande momento como uma espécie de metáfora com relação ao que Jesus Cristo queria ensinar os homens do passado, para amai-vos uns aos outros e desfrutar ao máximo da vida o quanto é tempo. Após isso, Deckard foge com Raquel para viverem as suas vidas e longe de uma desumanidade cada vez mais crescente. 

O Tempo Constrói Tudo  

Fracasso na época do seu lançamento, "Blade Runner" obteve o seu público e status de cult graças ao seu lançamento em VHS e sendo revisto e analisado nas diversas cinematecas pelo mundo. No início dos anos noventa, foi descoberta uma cópia de uma visão mais pessoal do diretor Ridley Scott e que fazia com que a ideia de Deckard ser um replicante se tornasse ainda mais forte. Anos mais tarde o filme ganharia uma edição definitiva, comandada pelo próprio diretor, concertando alguns erros de continuidade, melhorando ainda mais a sua fotografia e conquistando uma nova legião de fãs que até então nunca haviam assistido a obra.

Pensamentos Finais    

Ano após ano Hollywood atrai a massa de cinéfilos através de franquias inesgotáveis e para que assim gere lucros estratosféricos. Porém, o tempo não ajuda muito com relação alguns desses títulos, sendo que a maioria gera grande lucro, porém, os mesmos correm sempre o sério risco de não sobreviverem ao teste do tempo. "Blade Runner" não gerou lucro para o estúdio, mas nos trouxe conteúdo para nos fazer refletir sobre nós mesmos e com relação ao que estamos fazendo com a gente e ao restante do mundo. Um feito que é alcançado por poucos, mas que falam muito mais do que qualquer outro blockbuster que é lançado.

Com uma poderosa trilha sonora criada pelo já falecido  Vangelis, "Blade Runner" é uma obra prima a frente de sua época, sobrevivente ao teste do tempo e que ainda nos faz até hoje pensar sobre o que nos faz realmente humanos.      


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