terça-feira, 29 de outubro de 2019

Cine Dica: Em Cartaz: 'A Cidade Dos Piratas' - Um 8½ Animal e Assustadoramente Atual

Sinopse: Um diretor de cinema enfrenta uma situação complexa no meio da produção de seu longa-metragem: a autora de "Os Piratas do Tietê" começa a rejeitar os personagens quando o enredo está praticamente pronto. Para tentar salvar o filme, ele decide contar a sua história e realidade e ficção se misturam em um caótico labirinto.   

O universo particular de um cineasta, principalmente aquele que usa os seus próprios filmes para nos dizer alguma coisa, transita entre a criatividade e a falta de inspiração em alguma ocasião. Porém, há casos que a falta de inspiração pode ser usada justamente para dar o gatilho na mente de um diretor. Pegamos, por exemplo, o caso clássico de Federico Fellini, onde num momento de crise criativa acabou realizando "8½" (1963) uma de suas maiores obras primas.
É bem da verdade que em nosso próprio mundo real, principalmente nestes tempos complexamente indefinidos, há diversas situações que podem render boas ideias e para assim serem vistas nas telas. Em um Brasil atual completamente dividido, o cineasta Guto Parente, por exemplo, lançou no mesmo ano os filmes "Inferninho" e "O Clube Dos Canibais", sendo que um é sobre os excluídos da sociedade, enquanto o outro é sobre a elite atual e que devora a nossa própria carne. É aí que chegamos ao "A Cidade Dos Piratas", cuja a falta de inspiração de um cineasta acabou servindo para criar um dos filmes brasileiros mais corajosos e políticos nestes últimos tempos.
Dirigido por Otto Guerra, diretor de filmes como "Wood e Stock -Sexo, Orégano e Rocknroll" (2006), o filme conta a história do próprio Otto Guerra, que enfrenta uma complexa situação de falta de criatividade para a realização do filme "Piratas do Tiete", baseado na bora da cartunista Laerte Coutinho. Já essa última começa a rejeitar os personagens quando o enredo parecia praticamente finalizado. Em meio a isso, surgem alguns núcleos de história e dos quais criam um mosaico de situações pra lá de surreais.
Não é preciso conhecer a obra de Laerte Coutinho para compreender esse filme como um todo. Porém, ele se torna ainda mais rico aos olhos dos fãs que cresceram lendo as suas tirinhas e que falava um pouco sobre o Brasil com piadas acidas, críticas e muito criativas. Embora o primeiro ato possa parecer um tanto que confuso, estamos diante da própria história do Brasil, do qual foi construída por um discurso hipócrita, religioso e escravocrata para dizer o mínimo.
Ao mesmo tempo, é curioso que estamos diante de um filme dentro de um filme e assim por diante. A figura de Otto Guerra, por exemplo, surge como um artista criativo, mas cuja a sua falta de inspiração, além de problemas de saúde que realmente aconteceram, fazem com que o filme tenha sido remodelado ao longo do tempo. Não deixa de ser hilário vermos o realizador enfrentar e remodelar a sua própria criatura, assim como os seus colegas de trabalho do estúdio entrando a beira de um ataque de nervos em cena.
Dito isso, é preciso levar em consideração que essas mudanças que o projeto acabou passando ao longo dos anos foi mais do que necessário, principalmente devido aos principais eventos políticos que o país estava passando nesses últimos tempos.  Tendo assim alguns núcleos de história ao longo da projeção, muita coisa vista ali fará o brasileiro se identificar facilmente, principalmente devido aos principais eventos desastrosos que tivemos neste ano em nosso cenário político. Qualquer semelhança com a figura política vista no longa com a figura grotesca do nosso Presidente atual é mera coincidência, mas assustadoramente bem-vinda e na hora certa.
Aliás, o filme possui a mesma aura criativa e crítica que os filmes dos períodos "Cinema Novo" e "Cinema Marginal" nos passavam, ao falar sobre um Brasil que sempre sofre com as adversidades, golpes políticos, sensacionalismo e onde as minorias são sempre golpeadas pelo desdém vindo dos poderosos. Por mais que o filme nos faça rir em vários momentos, ao mesmo tempo, o seu ato final é chocante por conseguir entrelaçar com a nossa própria realidade e conseguir o feito de sintetizar o que foi realmente esse ano de 2019. Talvez, Otto Guerra e os demais realizadores do longa não tinham a mínima noção de estarem conseguindo realizar esse feito, mas são situações como essa da qual se gera um grande fruto e para assim ser colhido com gosto.
Ao lado de "Bacurau" de Kleber Mendonça Filho, "A Cidade Dos Piratas" é um dos filmes políticos mais corajosos desse ano, ao retratar um Brasil sendo moldado pelo preconceito, medo, destruição e da incompetência vinda dos poderosos de plantão.    


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