segunda-feira, 16 de junho de 2014

Cine Dica: Em Cartaz: Avanti Popolo




Sinopse: Um dia, André encontra uma série de películas Super 8mm, filmadas por seu irmão durante a ditadura militar dos anos 1970. Com estas imagens, ele se lembra das histórias vividas por seu pai, um homem que até hoje espera pelo filho, desaparecido há mais de 30 anos.

Um carro anda a noite pelas ruas de um bairro. O enquadramento se mistura com o vidro da frente do veiculo e acompanhamos o seu percurso por alguns minutos sem sabermos qual o seu destino. Além do barulho do veiculo, ouvimos um  programa de rádio, dedicado às canções do revolucionário da América Latina. Embora haja uma intriga bastante clara e um fio condutor a guiar as diferentes sequências, Avanti Popolo será sempre um filme materialista, que se interessa pela integridade cinematográfica dos espaços, dos tempos, das imagens e dos sons.
Abandonado pela mulher, André (André Gatti), homem de meia-idade, chega à casa do pai, que vive sozinho em companhia de uma cadela chamada Baleia (referencia a cachorra do clássico Vidas Secas) para passar alguns dias. A plasticidade da sala da casa, que vemos durante quase todo o tempo, a partir do mesmo ângulo, é impressionante, tingida pelas cores baças que contaminarão toda a composição pictórica do filme. Nesse espaço de confinamento, que, filmado de maneira frontal e a partir de um leve plongée que deforma os objetos, adquire ares de fantasia, pai e filho viverão seus pequenos dramas paralelamente (um obcecado com a cadela, o outro tentando travar algum contato com o passado), em uma relação marcada pela incomunicabilidade. Como se assombrasse a sala, a montagem convoca, pouco a pouco, um conjunto de arquivos familiares em Super 8 que dá conta da existência de um terceiro personagem: um irmão (e filho) ativista político que desapareceu durante uma viagem à União Soviética em meio à ditadura militar, e que parece contagiar de ausência os dois que restaram da família.
Nesse espaço povoado por sombras do passado, a quietude entre pai e filho será contraposto por sequências que mostram os dois a falar sozinhos, referindo-se a um e ao outro, mas se dirigindo alguém inexistente em cena. Um gesto muito peculiar transforma a câmera em testemunha e transforma o espaço da sala em confessionário que abriga discussões de seus ocupantes. Atravessa todo filme um tom absolutamente raro no cinema brasileiro: uma sorte de dramaturgia ranzinza, que se desdobra no minimalismo das interpretações (que faz pensar em Albert Serra ou Lisandro Alonso), nos comentários de André sobre as imagens do irmão (os quais, em outro gesto poderoso da montagem, são convocados antes mesmo que, no desenrolar da trama, ele encontre o projetor velho), nas interações dilaceradas entre todos os personagens. 
Avanti Popolo é um filme cuja figura central é o luto, em suas inúmeras possibilidades. Luto vivido pelos dois protagonistas, que respondem, cada um à sua maneira, ao passado do desaparecimento. E um luto mais profundo, em relação às utopias políticas que atravessaram a história do país. A sutileza com que o comentário político do filme se produz é uma das características mais notáveis: na ironia aos hinos nacionais que marca o encontro de André com o taxista, na canção-título interrompida já perto do final ou no desvario da comédia “Recuerdos da República”, mostrada ao protagonista pelo cineasta Marcos Bertoni, o filme afirma uma contundente irreverência (no sentido forte) em relação ao romantismo do passado, no mesmo movimento em que expõe um profundo desencanto em relação ao esvaziamento de um presente pós-utópico. Quando André coloca para tocar o disco de cantos do Exército Vermelho enviado pelo irmão, o volume da música (que mais parece um rap) sobe progressivamente, de forma anti naturalista e retumba sobre o espaço da sala, como se os fantasmas voltassem a ameaçar o presente do protagonista, e como se o filme apertasse um parafuso nos ouvidos do espectador.
Mas há ainda um denso luto pelo fim do cinema (ou por uma forma de fazer e viver o cinema). Não uma nostalgia inócua e paralisante, mas um verdadeiro luto, trabalhado de forma intensa durante todo o filme: nomear Baleia a cadelinha das obsessões do pai, fazer com que o espectador tenha de esperar até que um rolo de película seja rebobinado, filmar as ruínas de um cinema desativado como última imagem antes da palavra Fim não são apenas comentários fortuitos, mas uma maneira de trabalhar o luto até extrair dele suas potências de arte. A cegueira do pai (não por acaso, interpretado por Carlos Reichenbach) diante das imagens projetadas do filho é o momento em que todas as camadas se encontram, e a beleza pode existir por si mesma.


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