LOURENÇO: FAZ QUE NEM A MERDA VOLTE DEPOIS.
Sinopse: Lourenço
(Selton Mello) é o dono de uma loja que compra objetos usados. Aos poucos ele
desenvolve um jogo com seus clientes, trocando a frieza pelo prazer que sente
ao explorá-los, já que sempre estão em sérias dificuldades financeiras. Ao
mesmo tempo Lourenço passa a ver as pessoas como se estivessem à venda,
identificando-as através de uma característica ou um objeto que lhe é
oferecido. Incomodado com o permanente e fedorento cheiro do ralo que existe em
sua loja, Lourenço vê seu mundo ruir quando é obrigado a se relacionar com uma
das pessoas que julgava controlar.
De uma vez por todas
o cinema brasileiro provou que não deve nada a produções americanas e que às
vezes o próprio cinema americano nos deve um filme com uma historia de
qualidade, mesmo gastando todos os rios de dinheiro que obtém. Mas eis que um
pequeno filme feito na raça surpreende muita gente, inclusive eu que me pego uma
vez ou outra vendo e revendo essa pequena obra, que para mim é um grande clássico
moderno. O Cheiro do Ralo é um fascinante estudo sobre as relações de poder
entre quem tem e quem não tem: sedução, taras, fantasias, desejos, amor, dependência,
cinismo e insegurança.
Tudo isso embalado, com
um dos roteiros mais inteligentes dos últimos anos, levado às telas pelo
diretor Heitor Dhalia (diretor de “Nina”) e por uma interpretação magistral de
Selton Mello. Ele é o filme, apesar de interpretar um sujeito que está longe de
ser um ser humano exemplar (muito pelo contrário), sua entrega ao personagem é
tão completa que conseguimos entende-lo e, até mesmo em alguns momentos
assustadores, nos identificarmos com ele. Selton é Lourenço, um cara solitário
e cínico que dirige uma decadente loja de penhores, como se fosse um executivo
de uma grande empresa.
Ele tem uma
secretária, que faz a triagem dos clientes, um segurança (interpretado por
Lourenço Mutarelli, autor do livro em que o filme foi baseado) e Lourenço, que
se senta atrás de uma mesa para receber vendedores o dia inteiro. Os clientes
trazem toda espécie de lixo para tentar vender para Lourenço, cujos critérios
para a compra variam: ele paga apenas 30 reais por um faqueiro de prata e
oferece no máximo 100 reais por um violino Stradivarius, mas gasta 400 reais em
um olho de vidro sem valor.
Lourenço tinha uma
noiva (Fabiana Guglielmetti) com quem rompe faltando pouco para o casamento.
Lourenço:
“eu não tenho nada pra te oferecer, e você não tem nada pra me oferecer”.
A
mulher, inconformada, passa a fazer ameaças e a persegui-lo.
Lourenço: “toda
mulher é igual”, pois se você “se você bobear, os convites vão para a gráfica”.
Falando
em mulher, há garçonete do bar onde
Lourenço vai comer quase todos os dias. Ela tem um nome impronunciável.
“Lourenço:
uma mistura do nome do pai, da mãe e de alguma celebridade”.
E ele está
apaixonado por ela. Melhor dizendo,
Lourenço está mesmo apaixonado é pela “bunda” dela. Ele fica no balcão fingindo
ler algum romance policial enquanto espera ansioso, que a moça se vire e mostre
o corpo para ele.
“Lourenço: se a comida daqui fosse boa, seria então o paraíso”.
A
garçonete (interpretada por Paula Braun) começa a gostar da atenção e entra no
jogo de sedução de Lourenço até que um dia, inevitavelmente, ele acaba falando
mais do que devia e o “clima” termina. Por fim, há o bendito cheiro do ralo.
Pacientemente,
Lourenço explica para cada cliente que entra na loja, que o cheiro não vem
dele, mas sim do ralo do banheiro, que está com algum problema. Até que um dia,
um cliente, comenta que, já que Lourenço é o único a usar o banheiro, o cheiro
só pode vir dele. Ele culpa o cheiro pelo seu mau humor, por seu cinismo, por
sua vida. Ao invés de consertar o banheiro, ele tenta primeiro simplesmente
cimentar o ralo, mas o encanamento parece estar conspirando contra ele.
“Lourenço:
esses canos não são o que parecem, sendo que é por ai que eles nos observam”.
Não é um filme fácil:
o personagem é asqueroso e o roteiro é tão direto e cínico quanto ele. A
sucessão de personagens bizarros (que funcionam como se o filme fosse composto
por uma série de curtas metragens) trás de tudo, mas no fundo o que se vê é uma
relação de poder. Os vendedores estão lá porque precisam de dinheiro e alguns
(como uma drogada que sustenta o vício vendendo coisas roubadas) fazem qualquer
coisa por um pouco de dinheiro.
Lourenço tem que
tocar o negócio, mas, antes de tudo, precisa ter uma relação de dominação com
todos à sua volta. Por vezes o cliente é mais forte e ele se deixa dominar. Ele
fala de um “pai” que nunca conheceu e que ele tenta montar através de pedaços
como o olho de vidro e uma perna mecânica.
Ele é estranhamente
sedutor em um momento, para no seguinte se revelar um completo crápula. Suas falas
são diretas, cínicas e, por isso mesmo, engraçada por sua franqueza. A garçonete é muito mais do que um traseiro
bonito. Ela sabe do poder de sedução que tem, mas qual é o limite entre o
charme e a vulgaridade? Ela diz a Lourenço que estaria disposta a se mostrar
para ele de graça, mas que ele estragou tudo quando disse que queria pagar pra
ver. Por outro lado, quando precisa de dinheiro, ela vai procurá-lo. O que
Lourenço parece (ou não quer) entender, é que tudo é válido desde que seja
consensual, mas isso atrapalharia o jogo de poder dele. Ou seja, tudo tem seu
preço.
Feito em um esquema
de trocas e parcerias, o filme foi produzido por pouco mais de 300 mil reais,
mas parece muito mais caro. A direção de arte é muito boa e ele tem um ar
atemporal que lembra os filmes dos irmãos Cohen (Barton Fink, A Roda da
Fortuna). A edição dá um show à parte, com cortes muito interessantes nas cenas
de transição, quando vemos Selton Mello andando pelas ruas da Mooca, onde foi
rodado o filme.
O elenco é composto
por uma série de atores pouco conhecidos, mas muito bons e algumas
participações especiais, como Alice Braga na lanchonete, Tiazinha na TV e Paulo
César Peréio como uma voz ao telefone. O esquema de filmagem de “guerrilha” foi
necessário porque os temas “pouco atraentes” do roteiro não conseguiram trazer
investidores.
Um filme que mistura
de tudo um pouco, desde o drama a maior comédia de humor negro.
Indispensável.